Recentemente o portal G1 publicou uma matéria com a seguinte chamada: “Médico emite receita ilegível e farmacêuticos não conseguem decifrar”. O fato, evidenciado numa farmácia do Tocantins, foi a faísca que acendeu o estopim. Em poucos minutos a notícia ganhou as fan-pages dos maiores influenciadores digitais da farmácia brasileira e, instantaneamente, os compartilhamentos em grupos no facebook e whatsapp catapultaram a notícia para milhares de farmacêuticos.
O que me intrigou não foi a matéria em si, mas a repercussão que ela ganhou, mesmo sendo um fato tão comum na prática médica: o uso de uma caligrafia que nos remete a rabiscos esboçados por analfabetos. O fato é tão grave que existem hoje no país centenas de grupos destinados a compartilhar prescrições no intuito de obter ajuda para decifrá-las.
No Brasil, essa prática é tão enraizada na classe médica que o próprio Conselho Federal de Medicina precisou incluí-la como infração ao código de ética da profissão, que em seu artigo 39, capítulo III, traz que “é vedado ao médico: receitar ou atestar de forma secreta ou ilegível”. Não vou nem perder meu tempo parabenizando os milhares de médicos que prescrevem com responsabilidade, de forma legível (seja de próprio punho ou impressa). Reconhecer esta simples obrigação ético-profissional como uma qualidade seria um escárnio com os anos de formação que este profissional se submete. Mas o que está por trás do garrancho de alguns médicos? Para mim a resposta é simples: prescrição ilegível é mais um dos sintomas da prática de uma medicina boçal.
Deixo claro que não estou generalizando, existem muitos prescritores que respeitam seus pacientes. Informo também que meu conceito de legibilidade é tudo aquilo que uma pessoa devidamente alfabetizada consegue ler. Não estou falando apenas do indecifrável para farmacêuticos ou balconistas, que pela prática diária, e muitas vezes abrindo mão de uma rápida anamnese, conseguem ler o que na visão do paciente é um rabisco.
Junte à prática da prescrição ilegível, as consultas rápidas e não humanizadas, os diagnósticos superficiais ou equivocados e os erros de prescrição. Pronto! Está aí a raiz da estupidez refletida por PARTE dos profissionais de medicina. Serve de alento saber que muitos médicos já enxergam na atuação multiprofissional e no respeito ao paciente o único caminho para a prática honesta e digna da medicina. Esclareço que não escrevo este artigo por nenhuma “implicância profissional”, não sou disso, quem me conhece sabe. Escrevo imbuído por um sentido de revolta, sem conseguir entender como um profissional de saúde pode comprometer o sucesso do tratamento do seu paciente, ou até mesmo colocar a sua vida em risco, com um ato quase que PROPOSITAL de dificultar ao máximo o entendimento de qual medicação o doente deve tomar.
Uma pesquisa recente realizada pelo ICTQ, que ganhou repercussão nacional na TV e mídia escrita (Portal Terra, Revista EXAME, R7 e UOL), revelou que 40,9% dos brasileiros fazem autodiagnóstico pela internet. Desses, 63,84% têm formação superior. Esse dado é surpreendente, e mostra o descrédito que a consulta médica vem ganhando junto à população com mais acesso ao conhecimento. Parte desse resultado pode ser creditado na conta dos próprios médicos, que em suas consultas replicam, por analogia, uma prática que a Reforma Protestante e de Martinho Lutero aboliu da igreja: rezar a missa em latim. Isso mesmo, profissionais prepotentes que não fazem nenhuma questão que seus pacientes entendam o que eles estão falando e, muito menos, o que eles escrevem.
Sei que hoje, para compor o salário que ganhavam há 15 anos, os profissionais de medicina se submetem a jornadas extenuantes, com um nível de estresse assombroso. Sei que muitos viraram escravos de planos de saúde, recebendo cada vez menos por suas consultas. Além disso, conheço a falta de estrutura dos nossos hospitais públicos. Aos amigos médicos uma notícia: a realidade é dura, e é assim para todas as profissões de saúde. Isso não pode ser “vomitado” em cima do paciente!
Por fim, reconheço na maioria dos médicos e médicas do Brasil, o amor pela profissão que abraçaram e pela vida de seus pacientes. Para estes profissionais, as minhas mais sinceras congratulações. Já para os que praticam uma medicina pífia, que chegam a enxergar “status” na ilegibilidade de seus despachos, não fazendo nenhuma questão de facilitar a vida de seus pacientes e de outros profissionais de saúde, deixo o meu desprezo. Desprezo pela arcaica “medicina do semi-deus”, pela falta de respeito para com o próximo e pela falta de respeito para com o legado de profissionais que todos os dias se doam para salvar vidas. Espero que os profissionais da medicina que fazem destes mal feitos a prática do seu dia-a-dia, sintam vergonha ao ler este texto e o utilizem como motivação para uma profunda mudança de comportamento. Deixem de ser boçais!
* Professor do ICTQ (Instituto de Pesquisa e Pós-Graduação para o Mercado Farmacêutico), Bacharel em Farmácia, Administração de Empresas e Ciências Contábeis. Atua como consultor em gestão de varejo farmacêutico e é autor dos livros “Gestão Estratégica para Farmacêuticos” e “A Arte da Guerra para Farmacêuticos”.