Para avaliar a trajetória profissional do farmacêutico dos últimos 50 anos, fazer uma crítica a ele sobre sua condição atual e projetar seu desempenho no futuro, a equipe de jornalismo do ICTQ – Instituto de Pesquisa e Pós-Graduação para o Mercado Farmacêutico convidou o assessor da Presidência do Conselho Federal de Farmácia (CFF), professor doutor Wellington Barros da Silva, para compartilhar sua visão crítica e analítica sobre as questões que envolvem a profissão farmacêutica. Confira a entrevista exclusiva.
ICTQ - Como o senhor compara a situação do farmacêutico atual com aquele que atuava há 50 anos?
Wellington Barros da Silva - Há significativas diferenças entre os cenários de atuação do farmacêutico daquela época e de hoje, principalmente do ponto de vista do mercado de trabalho, da disponibilidade de força de trabalho e da demanda na área, passando pela organização e estrutura dos serviços de saúde, bem como pelo que o setor farmacêutico representava em termos de participação na economia. Para exemplificar, em 1960 nós não tínhamos um sistema de saúde nacional nos moldes do SUS. Não havia o conceito de Assistência Farmacêutica e, por conseguinte, os aspectos logísticos para garantia de acesso a medicamentos e insumos para a saúde praticamente inexistiam ou eram insipientes. Não tínhamos uma política pública de saúde na área. Também naquele período iniciávamos o processo de abertura da nossa economia para a entrada de investimentos estrangeiros e o quantitativo de farmacêuticos no País não se aproximava dos milhares de profissionais que hoje atuam nos diferentes âmbitos da profissão. Em termos de formação, nós não contávamos com muito mais do que duas dezenas de cursos de graduação em Farmácia. Hoje temos mais de 400 cursos no País (aproximadamente ¼ da formação mundial). Ressalto o percentual de participação feminina na força de trabalho, que é significativamente majoritária em relação há 50 anos. São características e contextos completamente diferentes, com novos e muitos desafios, mas ao mesmo tempo com a persistência de velhos dilemas que ainda necessitam ser superados.
ICTQ - Quais as principais conquistas de lá para cá?
Wellington Barros da Silva - Acho que há muitas conquistas, a despeito das dificuldades pelas quais passaram e passam todas as categorias de profissionais diante de um fenômeno que os especialistas chamam de processo de desprofissionalização. Quero destacar alguns avanços no plano político-sanitário, como a elaboração e implantação de políticas farmacêuticas pelo estado brasileiro, que qualificaram a produção de medicamentos no País, ampliaram a oferta e aumentaram drasticamente o acesso a medicamentos. Foi significativa a estruturação do sistema de vigilância sanitária, concomitantemnte à reorganização do sistema de vigilância em saúde, a institucionalização da Assistência Farmacêutica como política pública e um dos eixos de operacionalização do SUS. Essa conjuntura, por outro lado, demandou e possibilitou o desenvolvimento de novas perspectivas profissionais para a farmácia brasileira.
ICTQ - E quais foram as principais perdas em termos de projeção e atuação nesse período?
Wellington Barros da Silva - Primeiro é necessário entender o dinamismo das profissões como um fenômeno social, o que implica em um processo de idas e vindas, de mediações políticas, conquistas e atritos por conta da necessidade de ampliar ou atualizar atribuições e campos de atuação, ao mesmo tempo em que se faz necessário manter âmbitos já consolidados, o que não é fácil porque há competição entre as profissões. Falo em competição no sentido sociológico, pois cada profissão busca deter certo monopólio da prática e status social sobre seu objeto de trabalho, e isso muitas vezes gera atritos, principalmente porque o poder social de uma profissão sofre mudanças em decorrência das modificações na sociedade, na base do conhecimento tecnológico (principalmente na informação) e na incorporação da inovação, aliada à necessidade precípua da profissão em conciliar seu objeto social e sua prática com os interesses e demandas da sociedade e do estado.
Sendo assim, é inevitável, por vezes, uma profissão ter de compartilhar certos aspectos nos âmbitos de atividade com outras profissões – essa é a base da competição – e isso aconteceu no Brasil com a farmácia, principalmente eu diria em duas áreas: na área de alimentos e, mais recentemente, nas análises clínicas. Observo frequentes queixas e questionamentos reducionistas sobre o fenômeno da redução na participação da profissão farmacêutica nesses nichos de mercado. Frequentemente atribui-se, erroneamente, de forma exclusiva à formação o problema da perda de mercado de trabalho.
Não, o problema é mais complexo e tem a ver com as transformações no mundo do trabalho, com a criação de novas demandas nessas áreas e a capacidade da profissão de responder adequadamente a elas. Portanto, um aviso importante para todos nós: não existe âmbito profissional inviolável ou imune à invasão, por assim dizer, de outras profissões.
Há um artigo publicado no final da década de 1990 – “No struggle, no strength: how pharmacists lost their monopoly” (Social Science & Medicine, 1999) que aborda bem a questão. No final das contas é a capacidade política de articulação de um projeto profissional no interior da categoria e a competência ou sucesso de convencer o estado e a sociedade da relevância de dada categoria profissional para atender às demandas do mercado e do mundo do trabalho que determinam a força de uma profissão.
ICTQ – Nesse contexto, quais são os principais desafios da profissão farmacêutica atualmente?
Wellington Barros da Silva - São muitos os desafios e, de certa forma, eles guardam relação com o que expliquei antes. O principal desafio passa por ter claro internamente um projeto de profissão condizente com as demandas da sociedade, ter um foco claro que consolide a auto identidade de cada profissional e que identifique, de forma inequívoca, quem é e o que faz este profissional para o conjunto da sociedade. A profissão farmacêutica precisa entender que o nosso objeto social encontra-se atrelado, de forma inexorável, ao processo de uso de medicamentos pelas pessoas e pelo impacto social, sanitário e econômico que isso significa. Além disso, as ciências farmacêuticas, no âmbito da pós-graduação e da pesquisa, têm uma contribuição relevante para o desenvolvimento de tecnologias de saúde em setores relacionados às tecnologias duras do diagnóstico ao tratamento, à pesquisa e inovação de produtos para a saúde, mas também nas tecnologias mais leves relacionadas aos serviços que podem agregar melhor assistência e mais saúde às pessoas.
Por fim, complementaria dizendo que há necessidade de atualização do marco regulatório da profissão no País, bem como um programa permanente de desenvolvimento profissional, o que, de forma alentadora, temos vislumbrado por conta de várias iniciativas.
ICTQ - O senhor acha que o farmacêutico é valorizado no varejo da mesma forma como é valorizado na indústria?
Wellington Barros da Silva - Esta é uma questão que já foi praticamente superada em outros países, como por exemplo, nos Estados Unidos, mas que frequentemente aparece no discurso e nas reclamações internas de nossa categoria. Veja bem, a questão da valorização profissional comporta muitas variáveis, principalmente as de ordem social e econômica. Irei me ater a esta última porque ela reflete as condições de mercado. Refiro-me mais especificamente ao peso que a atividade profissional tem em determinado setor da atividade econômica, às condições de regulação ou liberalização do setor, a oferta de mão de obra qualificada, o número de postos de trabalho, o grau de essencialidade do profissional para as atividades de produção de bens ou serviços característicos do setor, entre outros. Além disso, em uma economia mais ou menos incorporada em um processo de escala global a contradição entre o papel classicamente exercido pela farmácia e as novas demandas de desempenho fazem com que determinadas atividades sejam mais ou menos valorizadas. Então, respondo aos seus leitores com uma pergunta: o modelo de produção industrial de medicamentos e o modelo de negócios do varejo farmacêutico demandam que tipo de profissional? A resposta assertiva a esta pergunta certamente indicará qual projeto de desenvolvimento profissional terá as maiores chances de reconhecimento e de sucesso.
ICTQ - A maior incidência de mulheres farmacêuticas no varejo tem mudado o perfil da profissão?
Wellington Barros da Silva - A presença feminina é um fato na farmácia brasileira. E isso marca uma forte tendência voltada para o cuidado. Alguns estudos no campo da antropologia e na área de marketing demonstram isso. Talvez esse seja um dos fatores internos mais significativos para a reorientação da profissão farmacêutica como provedora de serviços clínicos.
No entanto, alguns estudos têm evidenciado um elemento preocupante para a carreira e que guarda relação com a presença de questões de gênero na profissão. Os levantamentos internacionais mostram a ausência significativa de mulheres nos altos cargos de gestão no varejo farmacêutico e, ainda que pequena, foi detectada diferenças na remuneração bruta entre farmacêuticos e farmacêuticas, em detrimento destas últimas. O aumento da proporção de mulheres parece estar relacionado à redução global na remuneração dentro da categoria, tanto para mulheres quanto para homens.
Contudo, esse fenômeno não deve ser encarado como uma perspectiva negativa, mas um desafio que certamente será superado pela profissão.
ICTQ - Como a possibilidade da prescrição farmacêutica influencia a atuação desse profissional no Brasil?
Wellington Barros da Silva - Primeiro é necessário deixar claro o que significa a prescrição farmacêutica, a qual é um ato profissional de corresponsabilidade do farmacêutico com o paciente e com outros profissionais de saúde. Algumas pessoas acham, equivocadamente, que ao regulamentar a prescrição farmacêutica o CFF está autorizando o farmacêutico a realizar a prescrição médica, o que não é verdade. A prescrição médica é um ato do médico, mas a prescrição terapêutica de cuidados e o encaminhamento do paciente dentro da cadeia de cuidados são atribuições multiprofissionais e é sob este prisma que falamos de prescrição farmacêutica. Faço esta ressalva porque nós temos a convicção de que, do ponto de vista ético e legal, em uma sociedade com variadas necessidades de saúde e com tanta complexidade no processo de assistência, as atividades assistenciais interprofissionais devem ser a tônica do sistema.
Todas as experiências internacionais nesse sentido têm demonstrado isso: maior segurança, mais acesso e mais qualidade na assistência à saúde; além de melhor relação custo/benefício. O papel do farmacêutico como prescritor de assistência jamais se confundirá com o papel prescritor de outras profissões, mas, pelo contrário, propõe-se a ser complementar. Além disso, a prescrição farmacêutica estabelece uma atividade que, por sua natureza, gera a responsabilização do ato e a sua rastreabilidade em termos de garantir a adequada vigilância por parte dos órgãos sanitários, contribuindo, dessa forma, à maior segurança do cidadão ou cidadã que venha a utilizar os serviços de um estabelecimento farmacêutico ou que adquira um medicamento ou produto para a saúde.
Então, o exercício dessa atribuição clínica do farmacêutico reforça o caráter sanitário da atividade farmacêutica no varejo e carrega em si a potencialidade do estabelecimento farmacêutico integrar-se, de forma complementar, ao sistema de saúde, obedecendo, inclusive, o preceito constitucional e legal do SUS.
ICTQ - Como o senhor avalia a atuação de alguns farmacêuticos, principalmente nas grandes redes, que ficam restritos a atividades burocráticas e o simples comércio do medicamento?
Wellington Barros da Silva - As bases legais para isso começaram a mudar com a promulgação da Lei 13.021/14. Agora é necessário revolucionar a farmácia brasileira, e revolução exige objetividade, foco no que se pretende alcançar, mas também e, acima de tudo, a atitude da ousadia. Não falo em ousar de forma irresponsável, mas de ter a atitude de propor ao varejo, aos órgãos reguladores do estado, à sociedade e à própria profissão o seguinte debate: É possível utilizar melhor os estabelecimentos farmacêuticos e os farmacêuticos que neles atuam no sentido de prover às pessoas mais acesso à saúde com mais segurança e mais qualidade, inclusive reduzindo o enorme custo da morbimortalidade relacionada a medicamentos e otimizando o financiamento das ações de saúde?
Penso que a resposta franca e lógica a esta pergunta é que a sociedade brasileira e o estado não podem se dar ao luxo de desperdiçar ou subutilizar um profissional com a expertise do farmacêutico. As nações mais desenvolvidas já perceberam isso e eu creio que o Brasil, que nossos gestores, nossos políticos, o próprio cidadão não desejarão ficar para trás nesse tema.
É um absurdo que tenhamos um verdadeiro exército de farmacêuticos acessíveis nas farmácias brasileiras, mas, de certo modo, subutilizados enquanto a população clama por assistência.
ICTQ - O senhor acredita que há falta de qualificação entre os profissionais no varejo? O que deve mudar nesse quesito?
Wellington Barros da Silva - Não há falta de qualificação, mas há, como em qualquer outra profissão, a necessidade de desenvolvimento profissional. Como falei anteriormente, a complexidade do setor, a natureza dos problemas sanitários e o incremento cada vez maior de novas tecnologias de saúde exigem um aperfeiçoamento permanente de todos os profissionais de saúde, inclusive o do farmacêutico. Iniciativas estão sendo tomadas, a revisão das diretrizes curriculares nacionais dos cursos de graduação em farmácia; a oferta de vagas para farmacêuticos nos programas de residência multiprofissional em saúde, entre outros. Agora, precisamos avançar mais e penso que cedo ou tarde será necessário desenhar programas cada vez mais específicos para esse setor, talvez residências profissionais com foco na farmácia comunitária em parceria com o próprio varejo e inevitavelmente discutir de forma muito sincera mecanismo de certificação e renovação da proficiência para o exercício profissional, correspondem a um imperativo para a qualidade do profissional e uma forma de proteção da sociedade.
ICTQ - Como o senhor projeta a atuação do farmacêutico nos próximos 20 anos?
Wellington Barros da Silva - Será inevitável para a farmácia assumir esse novo paradigma profissional. Demanda-se um farmacêutico que tenha a responsabilidade de prover medicamentos e produtos para a saúde das pessoas agregando a provisão de orientação e outros serviços que as auxiliem a utilizar melhor e com mais qualidade esses produtos. Esse é o objeto social da nossa prática. Essa é a nossa missão e nossa vocação como profissionais da saúde. O status da nossa profissão daqui duas décadas dependerá da capacidade de nos convencermos disso, para a sustentabilidade da profissão, para auto realização mas, principalmente porque as pessoas e a sociedade precisam.