Estamos aqui novamente para nossa conversa, que ocorre todo mês por meio deste espaço. Escolhi falar sobre dois assuntos que se difundiram rapidamente pelas mídias sociais na época e que, embora não sejam recentes, permanecem como lendas no imaginário de muitos colegas e cidadãos em geral.
Os dois estão intimamente ligados e se referem à RDC 44/2009. Vocês se lembram dela? Sim... é aquela RDC que regulamentou as Boas Práticas Farmacêuticas no nosso mercado de varejo. É uma resolução extensa e, por isso, completa. Classifico-a, talvez, como uma das mais abrangentes e bem elaboradas da Anvisa no tempo em que eu estive à frente da Agência. É um trabalho exemplar de um grupo de servidores daquele órgão, do qual me orgulho ter participado e dirigido.
Pois bem, a primeira questão que quero apresentar a vocês é a que trata da venda de produtos alheios ao comércio farmacêutico de medicamentos. Alguns colegas, nas redes sociais, têm colocado exemplos de países como Estados Unidos, Canadá, Inglaterra, entre outros, mostrando a realidade do comércio de produtos fora do contexto sanitário ou da finalidade do estabelecimento farmacêutico, alegando que essa prática não é incompatível ou deletéria à da atividade farmacêutica, como muitas vezes defendo. Aliado a essa posição, alguns representantes do comércio criaram um senso comum na sociedade (inclusive por meio da imprensa) de que essa é uma posição radical de minha parte e que se apresenta dessa maneira por conta de minha concepção ideológica.
Dito isto, vamos por partes: em primeiro lugar quero dizer que recebo as críticas como um elogio com relação à posição radical e ideológica. Em tempos em que muitos se pautam por interesses meramente econômicos e onde ideologias são vistas como bobagens ou coisa de sonhadores, tenho ainda a satisfação de acreditar (pois nada de novo me faz mudar minha convicção) que esteja certo em perseverar que a farmácia é mais e deve propiciar muito mais do que somente um espaço de negociação de produtos. Além disso, conforme se pode constatar no Houaiss (o dicionário), ser radical significa relativo ou relacionado com o fundamento, a origem; e ainda tendente ou disposto a introduzir alterações profundas em hábitos, condições, pontos de vista correntes. Uma vez mais credito a meus críticos a pecha de radical como um elogio.
Assim, quero então propor uma linha para que caminhemos em nosso raciocínio. Primeiramente os países mencionados, reiteradamente por meus interlocutores, têm um arcabouço legal e regulatório diferente do nosso. As leis são cumpridas à risca e observem que uma transgressão legal ou normativa em qualquer dos países citados termina em indenização pecuniária à vítima e cadeia ao transgressor, lembrando ainda que nesses países os processos se iniciam e terminam em meses (não em décadas).
Alguém de nós que teve a oportunidade de visitar os Estados Unidos, a Inglaterra ou o Canadá já tentou comprar um simples antibiótico (como dizem os leigos – ou mal intencionados), um anti-hipertensivo ou qualquer outro medicamento sem receita médica quando essa é necessária? Algum de nós adentrou uma farmácia nesses países e não encontrou – não um – mas uma equipe de farmacêuticos e seus auxiliares atendendo à população? Além disso, se tivermos a oportunidade de conversar com um farmacêutico em qualquer desses países nós teremos a certeza do orgulho e respeito que lhes é dedicado por seus povos, além da remuneração digna que lhes é atribuída.
Assim, amigos, não sou, como diz a lenda, radicalmente e por motivos ideológicos pessoais, contrário ao que se pratica nesses países com relação aos produtos estranhos à boa prática farmacêutica. Sou, sim, radicalmente contra ao que se fez (e em grande medida ainda se faz) em nosso País - o não cumprimento da legislação e normas sanitárias, o desrespeito ao profissional farmacêutico e, por conseguinte, ao paciente que dele necessita para fazer uso racional e acompanhamento de sua farmacoterapia. Se, e quando, os estabelecimentos farmacêuticos enquadrados na situação que descrevi acima fizerem o que foram criados e autorizados a fazer eu topo, sem radicalismos, discutir o comércio de alheios.
Numa próxima oportunidade pretendo abordar a venda de medicamentos isentos de prescrição (MIPs) e as medidas impostas em 2009 pela RDC 44/09.
Abração do Raposo
Dirceu Raposo de Mello é presidente do Conselho Científico do ICTQ – Instituto de Pesquisa e Pós-Graduação para o Mercado Farmacêutico, ex-presidente da Anvisa e ex-presidente do CRF-SP.