Escrevi em meu último artigo para o ICTQ que a segunda parte deste assunto viria a seguir, e assim, aqui está ela. Em 2009, quando estive na presidência da Anvisa, editamos a Resolução 44 que trata das Boas Práticas em Farmácias, do disciplinamento da comercialização de produtos diversos por esses estabelecimentos e do acesso a medicamentos isentos de prescrição (MIPs).
O comércio dos produtos alheios (como designamos em linguagem farmacêutica) foi tratado em uma Instrução Normativa (IN nº 9) que, após longa batalha nos tribunais, foi revogada, entendendo os magistrados da legalidade da comercialização de outros produtos por aqueles estabelecimentos. O acesso aos MIPs tratamos por meio da IN nº 10. No Brasil, o acesso a esses produtos se faz em dissonância com a legislação - o produto próximo do consumidor e a informação para seu uso correto e seguro longe (atrás do balcão).
Quero me aprofundar aqui no episódio da IN (nº 10), pois, após pouco mais de um ano de sua aprovação, a então diretoria colegiada da Anvisa deliberou por sua revogação baseada em dados oriundos da indústria farmacêutica e do comércio varejista, além do setor de farmacovigilância da Agência,.
A alegação ora feita pela Agência apoiava-se em dois argumentos:
1. A indústria trazia a informação por meio de dados de que a restrição de acesso aos medicamentos (deixá-los atrás do balcão) tinha provocado um aumento no tíquete médio dos pacientes com relação a esses produtos nas farmácias, pois quando solicitado o produto ao farmacêutico ou balconista este atendia com a apresentação de maior unidades por caixa ou blister.
2. A Agência, por meio de dados obtidos pelo SINITOX, alegou que a restrição não diminuiu o número de acidentes (intoxicações) por esse tipo de medicamento e, portanto, era inócua.
A essas duas considerações tenho a dizer:
1. O Brasil é realmente um País maravilhoso. Aqui, em nome do consumidor da indústria e o varejo se unem e denunciam que estão faturando muito e, portanto, pedem para que sejam diminuídas suas vendas e lucros!
2. Refuto o argumento da Agência, e explico: durante mais de três anos de debates internos com a competente equipe da Instituição e a sociedade civil, em que pese a importância das intoxicações provocadas por MIPs em nosso meio, o mais relevante argumento é o da proteção e defesa do consumidor consagrado na Lei 8078/90, cujo trecho reproduzo: -
Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios: (Redação dada pela Lei nº 9.008, de 21.3.1995)
*I - reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo;
*II - ação governamental no sentido de proteger efetivamente o consumidor:
a) por iniciativa direta;
b) por incentivos à criação e desenvolvimento de associações representativas;
c) pela presença do Estado no mercado de consumo;
d) pela garantia dos produtos e serviços com padrões adequados de qualidade, segurança, durabilidade e desempenho.
E ainda.....
CAPÍTULO IV
Da Qualidade de Produtos e Serviços, da Prevenção e da Reparação dos Danos
SEÇÃO I
Da Proteção à Saúde e Segurança
*Art. 8° Os produtos e serviços colocados no mercado de consumo não acarretarão riscos à saúde ou segurança dos consumidores, exceto os considerados normais e previsíveis em decorrência de sua natureza e fruição, obrigando-se os fornecedores, em qualquer hipótese, a dar as informações necessárias e adequadas a seu respeito.
Parágrafo único. Em se tratando de produto industrial, ao fabricante cabe prestar as informações a que se refere este artigo, através de impressos apropriados que devam acompanhar o produto.
*Art. 9° O fornecedor de produtos e serviços potencialmente nocivos ou perigosos à saúde ou segurança deverá informar, de maneira ostensiva e adequada, a respeito da sua nocividade ou periculosidade, sem prejuízo da adoção de outras medidas cabíveis em cada caso concreto.
Como podemos constatar, meus amigos, a questão da defesa do consumidor em suas relações com os fabricantes e revendedores está muito bem disciplinada em nosso País. Assim, a IN 10/09 não pretendia, em primeiro lugar, combater ou diminuir os agravos acidentais com MIPs, mas, antes de tudo, atender aos preceitos da Lei 8078/90.
Ainda com relação a esses produtos, os que hoje se apresentam de forma fracionada, além de descumprirem a referida Lei, descumprem também a RDC 80/06, que trata do tema e que entre outras coisas prevê a inclusão de bula na dispensação do produto. E como já era previsto...produto na mão, informação não se sabe onde.
Para finalizar, quero usar um exemplo do qual lanço mão para mostrar o que ocorre nesse ambiente em nosso País.
Vamos imaginar que quero comprar um liquidificador. Pois bem, dirijo-me a uma loja de eletroeletrônicos. Escolho no mostruário e peço o produto ao vendedor. Ele vai ao estoque e me traz o produto. Dentro da caixa está o manual de instruções – A BULA!! Aí eu argumento que sei como funciona um liquidificador, a tensão elétrica adequada, que não devo colocar minha mão dentro do equipamento quando conectado à rede elétrica etc. Peço então a ele um desconto e sugiro ao fabricante, por meio do SAC, que para baratear o custo do produto, daqui para frente, ele seja comercializado sem caixa e “bula”. Vocês sabem a resposta, não? Em respeito à Lei 8078/90 isso é impossível.
Mas, apesar disso vamos continuar lutando, enquanto farmacêuticos e cidadãos, para que um dia neste País medicamentos sejam tratados com a segurança dos liquidificadores.
Abração do Raposo
Dirceu Raposo de Mello é presidente do Conselho Científico do ICTQ – Instituto de Pesquisa e Pós-Graduação para o Mercado Farmacêutico, ex-presidente da Anvisa e ex-presidente do CRF-SP.