Impulsionadas pelos casos de intoxicação e outros comprometimentos à saúde provocados pela contaminação de medicamentos, alguns fatais, entre as décadas de 1930 e 1960, autoridades sanitárias dos EUA resolveram agir, publicando, em 1963, um documento com requisitos básicos para fabricação de medicamentos. Esse atestado é o embrião do que anos mais tarde viria a ser as Good Manufacturing Practices (Boas Práticas de Fabricação). Em 1969, a Food and Drug Administration (FDA), agência norte-americana que regula medicamentos e alimentos, publicou a primeira regulamentação das Boas Práticas de Fabricação (BPF) com força de lei. Na mesma época, a Organização Mundial de Saúde (OMS) também se manifestava em direção à criação de um manual global de BPF. O primeiro rascunho da norma surgiu em 1967, mas o marco histórico se deu durante a 28ª Assembleia Mundial de Saúde, realizada em maio de 1975. Nela foi aprovado o texto “Guia de Boas Práticas de Fabricação para a Indústria Farmacêutica”, com os princípios gerais sobre as normas a serem seguidas mundialmente.
No Brasil, as discussões sobre as BPF foram disseminadas a partir da década de 1970 pelas multinacionais, que traziam o conceito já implementado em suas matrizes. Entre 1985 e 1988, importantes modificações foram introduzidas nas áreas de saúde, período em que foram estabelecidas medidas sanitárias de controle de produtos. “A partir de 1988, um novo paradigma norteou as ações socioeconômicas, incluindo novas medidas regulatórias para promover padrões copiados da FDA dos EUA”, revela Azi Mauricio Guerra Ceccopieri, consultor e professor do ICTQ. Apesar disso, as BPF só foram adotadas como norma no País em 1995, com a publicação pela Secretaria de Vigilância Sanitária, do Ministério da Saúde, da Portaria nº 16, de 6/3/1995, que apresenta uma versão nacional do “Guia das BPF” da OMS, sendo considerada o marco regulatório do setor no Brasil. Atualmente, as boas práticas são regulamentadas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), por meio da RDC nº 17/2010. Além dessa atribuição, a Anvisa tem o papel de fiscalizar o cumprimento das normas e de atestar isso por meio da concessão do Certificado de Boas Práticas de Fabricação (CBPF).
A implantação e o cumprimento das normas de BPF é uma exigência legal para todos os estabelecimentos fabricantes de medicamentos no País, e o CBPF (Certificado de Boas Práticas de Fabricação) é o documento que atesta se a empresa cumpre as boas práticas. Ele apresenta os dados do estabelecimento e das linhas de produção certificadas e o prazo de validade da certificação. A concessão do CBPF ocorre mediante verificação do cumprimento dos requisitos técnicos constantes na legislação vigente de BPF e correlacionadas, por meio de inspeções e monitoramento de dados pela Anvisa. A certificação é concedida por unidade fabril, contemplando as linhas de produção, formas farmacêuticas, classes terapêuticas especiais ou classes de risco de produtos para as quais a empresa foi inspecionada, conforme prevê a RDC 39/2013.
7 passos para obtenção do CBPF
1º – Ao receber o pedido de certificação, a área técnica da Anvisa consultará o banco de dados interno para verificar se há inspeção recente realizada para a empresa.
2º – Se não houver inspeção prevista, a agência envia ofício à vigilância sanitária local (estadual ou municipal) solicitando a realização da inspeção.
3º – Depois que o ofício chega à vigilância sanitária local, caberá a ela, de acordo com seu cronograma e planejamento, definir a data da inspeção.
4º – Para a certificação, são avaliados itens técnicos de todos os setores da empresa. No caso de fabricante, são analisados almoxarifado, utilidades (sistemas de água, ar, etc.), produção, controle de qualidade, garantia da qualidade, entre outros pontos abordados nas normas específicas publicadas pela Anvisa.
5º – A equipe inspetora se reúne ao término da inspeção para consolidar as informações e observações, subsidiando a elaboração do relatório de inspeção e conclusão do resultado da inspeção.
6º – Após chegarem a um consenso, a entrega do relatório é feita à empresa, na própria unidade inspecionada ou na vigilância sanitária, dependendo dos procedimentos locais.
7º – A vigilância sanitária enviará a Anvisa o relatório de inspeção, que é avaliado pela agência para subsidiar a análise da petição de certificação.
De acordo com a Anvisa, o diploma da certificação de BPF é valido por dois anos, sem prorrogação. Prestes a vencer, a empresa deverá solicitar um novo certificado. Seu vencimento não configura proibição ou paralisação das atividades produtivas, mas para que haja publicação da nova certificação sem interrupção de continuidade com a que está em vigor, a petição deverá ser protocolada em um período compreendido entre 270 e 180 dias antes do vencimento do certificado vigente.
Avaliados os requisitos técnicos e de protocolo, caberá à Anvisa se manifestar quanto ao deferimento ou indeferimento do pedido até a data de vencimento do certificado. A ausência de manifestação por parte da área técnica responsável da agência até a data do vencimento do certificado ocasionará a publicação no Diário Oficial da União da sua renovação automática. Por outro lado, a recusa, ausência de pronunciamento ou cancelamento da inspeção sanitária por parte da empresa interessada impedirá a renovação automática ou determinará o cancelamento do certificado renovado automaticamente. As renovações automáticas serão canceladas também nos casos em que o estabelecimento for classificado em exigência ou insatisfatório. De acordo com a Anvisa, a renovação automática não exclui a possibilidade da análise e do seu eventual cancelamento, caso seja comprovado que o estabelecimento não cumpre as boas práticas.
No caso de empresas não detentoras do CBPF, mas que desejam obter o certificado, basta fazer o pedido formal na Anvisa, seguindo os procedimentos de cadastramento, documentação e pagamento das taxas determinadas. A área técnica da agência irá analisar a documentação e o relatório de inspeção da vigilância sanitária local que atesta o cumprimento das boas praticas. Caso esteja tudo dentro das exigências, é emitido o CBPF. O tempo para o primeiro pedido varia em função da inspeção e consequente envio do relatório de inspeção por parte da vigilância sanitária.
Apesar de as inspeções para averiguação das Boas Práticas de Fabricação ficarem a cargo dos órgãos de vigilância sanitária locais, que são os responsáveis pela emissão da licença sanitária de funcionamento, geralmente de frequência anual, a auto-inspeção periódica por parte da empresa é também uma obrigatoriedade avaliada quando da visita técnica da vigilância. Já a Anvisa inspeciona as indústrias fabricantes de medicamentos sempre que há uma solicitação formal de auxílio por parte da autoridade sanitária local ou ocorra o recebimento de denúncias.
O que compreendem as BPF
Boas Práticas de Fabricação são um conjunto de procedimentos baseados em normas nacionais e internacionais que asseguram que os produtos sejam produzidos e controlados com padrões de qualidade apropriados para o uso pretendido e requerido pelo registro. Elas abrangem ações que garantem a minimização do risco sanitário envolvendo a produção de medicamentos, produtos para saúde, cosméticos e alimentos. “As BPF são importantes porque diminuem os riscos inerentes a qualquer produção que não podem ser detectados apenas pela realização de ensaios nos produtos terminados”, revela Emanuelle Giomo, consultoria especializada na área de Vigilância Sanitária e professora de pós-graduação do ICTQ, lembrando que entre os riscos estão incluídas a contaminação cruzada e por partículas, troca ou mistura de produtos. “Nenhuma empresa fabricante de medicamentos está livre da ameaça do risco sanitário”, acrescenta Azi Mauricio Guerra Ceccopieri. “Adotar condutas severas e executáveis para controles industriais, sanitização e principalmente no fortalecimento da execução dos procedimentos de limpeza e checagem de contaminação são posturas importantes no âmbito das boas práticas”, completa o professor.
As BPF englobam todas as operações envolvidas na fabricação de medicamentos, incluindo as drogas em desenvolvimento destinadas a ensaios clínicos. Contemplam os cuidados que devem ser tomados desde a aquisição de matéria-prima até o processo de produção, que inclui as operações de recebimento dos materiais, preparo dos medicamentos, processamento, produto terminado e acondicionado. Também fazem parte do rol das BPF o controle da qualidade; qualificação da mão-de-obra; adequação das instalações, com espaços apropriados e identificados; equipamentos e sistemas informatizados; materiais, recipientes e rótulos próprios; procedimentos e instruções aprovados e vigentes; armazenamento adequado de insumos, produtos e embalagem; e expedição, transporte e logística compatíveis; além do controle do processo como um todo.
De acordo com a RDC 17, os registros referentes à fabricação e distribuição devem possibilitar o rastreamento completo de um lote, sendo arquivados de maneira organizada e de fácil acesso. Além disso, deve ser implantado um sistema capaz de recolher qualquer lote, após sua comercialização ou distribuição, em caso de não conformidade. Por fim, as reclamações sobre produtos comercializados devem ser examinadas, registradas e as causas dos desvios da qualidade, investigadas e documentadas. Devem ser tomadas medidas com relação aos produtos com desvio da qualidade e adotadas as providências no sentido de prevenir reincidências.
Os desafios das BPF
O maior desafio das BPF não está em sua implementação, na visão da professora Emanuelle Giomo, visto que suas exigências são amplamente conhecidas pelas empresas e consolidadas na legislação, mas sim na manutenção e no controle de seus requisitos devido aos inúmeros processos envolvidos na fabricação de medicamentos e em todas as variáveis envolvidas nesses procedimentos. “Um dos grandes testes para manutenção das BPF é o controle das atividades que possuem intervenção humana. Quanto mais intervenções, maiores os riscos de contaminações cruzadas ou por partículas, trocas e misturas”, diz Emanuelle, que vê no monitoramento dos processos e análises de dados por meio das ferramentas das BPF, como a Revisão Periódica de Produtos, importantes aliados de controle e para que sejam tomadas as ações necessárias de forma a mitigar os riscos de desvios da qualidade.
Para o professor Azi Mauricio Guerra Ceccopieri tão desafiador quanto garantir a qualidade dos produtos em conformidade com as BPF é enfrentar a burocracia para sua implantação e manutenção. “Cumprir uma resolução de BPF com conformidade de 100%, que desdobrado vira no mínimo 592 artigos da RDC 17/2010, é um desafio e tanto. Pelas regras de BPF, a revisão periódica dos produtos (RPP) deve ser executada anualmente, checando-se o comportamento da qualidade em diversas análises. Imagine uma empresa que tenha 300 produtos registrados. É um relatório extenso e demanda conhecimento e uso de ferramentas estatísticas e de pessoal numa estrutura enxuta. Não é fácil”, analisa. Preventivamente, para se evitar surpresas desagradáveis, pode ser feita uma checagem quanto à cultura de BPF da empresa por meio de treinamentos, pesquisas internas, uma vez que os procedimentos podem ser sempre melhorados. “Eu fico pasmado com algo aparentemente simples: higienização de mãos. O manual da Anvisa que rege o tema possui 52 paginas, pergunte quem sabe da sua existência ou o leu. Essa simples atitude garante muita coisa e demonstra os padrões culturais de BPF de uma empresa”, observa Ceccopieri.
Por mais que se adote procedimentos de controle de qualidade, até preventivamente, problemas podem ocorrer em qualquer etapa da produção e se não for detectado a tempo e corrigido a empresa pode até perder o Certificado de Boas Práticas de Fabricação, uma vez que a fiscalização é severa. “O CBPF pode ser cancelado a qualquer momento, caso a autoridade sanitária competente comprove o não cumprimento das BPF”, lembra Emanuelle Giomo. A proibição ou interdição das atividades de produção, segundo a Anvisa, pode ser determinada em consequência de não conformidades criticas detectadas durante as inspeções, por meio de avaliação de risco da equipe inspetora. O não cumprimento das Boas Práticas de Fabricação configura ainda infração sanitária, conforme disposto na Lei nº 6.437/1977. As empresas que descumprirem a determinação podem sofrer penas de advertência, apreensão, inutilização, interdição, cancelamento da autorização de funcionamento ou do registro do produto e multa, sem prejuízo das sanções de natureza civil ou penal.
Certificação cancelada
Mesmo laboratórios de grande porte podem sofrer reveses e terem sua certificação cancelada. É o que aconteceu no ano passado com a EMS, que teve o pedido de renovação do Certificado de Boas Práticas de Fabricação negado pela Anvisa. De acordo com a agência, a negativa da renovação foi decorrente de problemas registrados no almoxarifado da companhia, onde as matérias-primas utilizadas na fabricação de dois antibióticos não estavam sendo conservadas na temperatura e umidade recomendadas. Além disso, segundo levantamento da Anvisa, a empresa estava usando matéria-prima diferente da relatada no registro dos medicamentos. Órgãos públicos, distribuidores e farmácias não compram medicamentos de laboratórios que não tenham esse certificado. De acordo com a EMS, o problema foi resolvido e o certificado renovado. Esclarece ainda que durante o impasse não houve restrição para que os medicamentos fossem comercializados em farmácias e drogarias de todo o Brasil.
Em junho deste ano o laboratório Biosintética, pertencente ao Aché, outro gigante do setor, também perdeu o CBPF após inspeção da Anvisa. Foram registrados desvios no processo produtivo e na garantia de qualidade. A Biosintética informa que recebeu a inspeção da Coordenação de Vigilância em Saúde (Covisa) em julho, e o resultado foi satisfatório e de acordo com as boas práticas recomendadas pela Anvisa. Com base nesse relatório, a agência divulgou o novo CBPF da Biosintética, atestando a qualidade dos produtos da empresa. A recuperação do CBPF envolve basicamente corrigir o que está errado, mas pode ser trabalhoso e sair caro, revela Azi Mauricio Guerra Ceccopieri. “Às vezes pode ser um simples procedimento, mas em outros casos demanda investimentos grandes, como a troca de equipamentos, construção e adequação de um sítio inteiro, depende muito do caso”, assinala o professor.
De acordo com Emanuelle Giomo, a perda do certificado de BPF acarreta problemas para o laboratório, como por exemplo, a impossibilidade de renovação de um registro de medicamento ou inabilitação para participação em licitações. Sem o CBPF a empresa também não pode exportar medicamentos e nem importar insumos farmacêuticos. “Mais do que perdas materiais, o descumprimento dos requisitos das BPF pode envolver grandes riscos para a saúde da população, o que fere a imagem da companhia perante a sociedade”, sustenta a professora. “A perda da certificação é péssima para a imagem de uma empresa, isso acontece porque faltou alguma coisa: gestão, conhecimento, comunicação e até mesmo investimento”, acrescenta Azi Mauricio Guerra Ceccopieri, lembrando que nos casos mais extremos, como contaminações graves ou até mesmo sabotagem, há recomendação de suspensão das atividades. “Normalmente, a empresa deveria pensar que o zelo pela qualidade nunca se tornará algo que possa se exceder. Pelo contrário, a qualidade na produção de medicamentos pode se tornar um diferencial e promover empresas e pessoas, levando-as a um patamar mais elevado”, diz o professor.
Tornar possível a eliminação de contaminação é a meta a ser atingida em toda a cadeia produtiva, enfatiza Ceccopieri. Porém, segundo ele, os desafios da implementação das BPF vão além da porta da fábrica. “Desenvolvemos o fornecedor da matéria-prima, qualificando-o em dois tipos de quesitos, qualidade e BPF. Armazenamos a matéria-prima nas condições adequadas e produzimos e embalamos o medicamento nos requisitos máximos de higiene e esterilidade, tudo dentro do arcabouço das BPF e de qualidade, e enviamos para expedição. Aí começa o momento das duvidas nas empresas. Como estão as condições de armazenagem do distribuidor? O produto é manuseado adequadamente durante a logística de distribuição? O veiculo que transporta o produto é o ideal? Qual o treinamento de BPF é submetido quem manuseia o medicamento? E na drogaria? E no hospital? Todas essas premissas deveriam estar presentes na cadeia inteira, mas infelizmente não estão. Nem a simples higienização das mãos para o manuseio do produto é feita adequadamente. Daí se conclui que o risco sanitário tem ainda muito espaço para ser minimizado ao logo da cadeia de produção.”