Por muito tempo, falar em terapia genética significava adentrar um terreno de pura experimentação da medicina, algo para beneficiar as gerações futuras. Agora esse futuro deixa de ser remoto. Chegou ao mercado o primeiro medicamento de terapia gênica – um marco na história da medicina. Trata-se do Glybera, uma solução aprovada pela agência europeia que regula remédios para ser comercializada nos países do continente a partir deste ano.
A droga é a esperança de uma vida sem sofrimento para milhares de pessoas que possuem uma doença genética rara, caracterizada por um defeito no gene que determina a produção da enzima lipoproteína lipase, responsável pela digestão da gordura. Sem ela, o corpo não metaboliza o nutriente, o que acarreta sérias consequências, como sucessivas internações por pancreatite (inflamação do pâncreas). Até hoje, não havia tratamento a não ser dieta restritiva.
O remédio troca o gene defeituoso por um saudável, corrigindo o problema. É o princípio da terapia gênica. Dito assim, parece um conceito simples. Mas sua concretização sempre foi um desafio. Para concluir o desenvolvimento do Glybera, por exemplo, foram 12 anos de trabalho, realizado pela companhia de biotecnologia holandesa UniQure. Isso porque a substituição do gene defeituoso pelo correto envolve um processo complexo. Primeiro, é preciso achar o que os cientistas chamam de “veículo”, o meio pelo qual o gene saudável será levado até o interior das células para tomar o lugar do que funciona erradamente. Há algum tempo conclui-se que a melhor forma de fazer isso é usar um vírus. A escolha foi feita porque, ao invadir as células, esse micro-organismo mistura seu material genético ao DNA das células e as faz funcionar como uma espécie de fábrica dele próprio. É dessa forma que ele se espalha pelo corpo. Portanto, já que ele atua dessa maneira, por que não utilizá-lo para transportar para dentro do corpo aquilo que se quer de fato? É uma estratégia chamada por muitos de cavalo de troia.
Uma das questões mais complicadas, porém, é fazer com que o vírus misture o gene desejado ao DNA das células, sem causar doenças. Entre os candidatos, um dos mais estudados é o vírus adeno-associado. Ele provoca menos reações do sistema imunológico, é mais fácil de manipular e não causa enfermidades. Foi o tipo escolhido pelos cientistas holandeses. Ainda assim, os pesquisadores utilizaram drogas para evitar a rejeição ao vírus. A terapia, então, se mostrou eficaz. Com 12 injeções aplicadas diretamente em músculos da perna dadas de uma só vez, os 27 pacientes que participaram dos testes – realizados no Canadá e na Holanda – passaram finalmente a fabricar a enzima e continuaram sua produção sem necessidade de novas injeções.
Jörn Aldag, executivo que coordenou o estudo, garante que o tratamento é o fim da doença. “É a cura”, afirmou à ISTOÉ. No mundo científico, a façanha foi comemorada. “Eles não utilizaram uma estratégia nova, mas conseguiram que o gene de interesse fosse entregue ao paciente por um longo período”, afirma o pesquisador Guilherme Baldo, do Centro de Terapia Gênica do Hospital de Clínicas de Porto Alegre. “Mais estudos são necessários, mas a terapia é muito interessante”, diz o cardiologista Raul Santos, consultor do Centro de Medicina Preventiva Einstein e professor da Universidade de São Paulo (USP). “Esperamos a sua utilização no País”, afirma Eliana Cotta de Faria, da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Por enquanto, a droga só está disponível na Europa e está sendo submetida à aprovação nos EUA. “Mas é possível realizar o tratamento de brasileiros que desejarem vir à Holanda”, diz Aldag. “É preciso analisar cada caso.” Segundo a empresa holandesa, é cedo para definir o custo da terapia. Há especulações de que o tratamento poderia chegar a custar cerca de 1,5 milhão de euros, o equivalente a quase R$ 3 milhões.
Em um contexto mais amplo, a aprovação do Glybera significa que o mundo já está capacitado a avançar na terapia gênica. “Esse remédio abre uma porteira para esse tipo de tratamento”, comemora Carlos Menck, do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo e pesquisador de terapia genética na área do câncer. De fato, a fronteira foi aberta. O próximo remédio da categoria a chegar ao mercado será para o tratamento da Síndrome de Imunodeficiência Combinada, uma doença genética que impede o funcionamento do sistema imunológico. O laboratório GlaxoSmithKline, em parceria com o Instituto MolMed, na Itália, aguarda a liberação das agências reguladoras para vender a droga. Ela está em estudo há mais de 11 anos em centros de excelência, como o Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos (NIH). “Médicos e pacientes não têm muita opção”, disse à ISTOÉ Dan Kastner, diretor-científico do Instituto Nacional de Pesquisa para o Genoma Humano, um braço do NIH. A instituição já restaurou o sistema imunológico de três crianças com a terapia.
Nos laboratórios, há uma profusão de testes clínicos usando a manipulação genética a nosso favor. Os genes enxertados têm propósitos diferentes. Entre outras funções, podem mandar as células destruir um tumor, corrigir uma mutação, determinar a fabricação de proteínas ou aumentar a capacidade de funcionamento do sistema imunológico. Em um experimento realizado no Instituto Feinstein de Pesquisa Médica de Nova York (EUA), por exemplo, os cientistas injetaram no cérebro de 65 pacientes com doença de Parkinson uma solução contendo um gene que determina a produção de uma proteína cuja ausência pode deflagrar sintomas da enfermidade. Os doentes que receberam a injeção apresentaram melhora de 23% nos sintomas. Já os que receberam placebo, 12%. “A terapia gênica para doenças como Parkinson é uma realidade”, disse à ISTOÉ Andrew Feigin, autor do estudo.
O mesmo panorama é observado em relação à Aids. Na última semana, cientistas da Escola de Medicina de Stanford (EUA) publicaram um artigo no qual relataram que conseguiram modificar geneticamente os linfócitos T (células de defesa invadidas pelo HIV) de modo a torná-los resistentes à entrada do vírus. Por enquanto, os estudos estão em nível bastante preliminar, mas o feito é um passo importantíssimo no combate à doença. Em outra ponta, os cientistas continuam a lutar por uma vacina. Uma pesquisa feita pelo Instituto de Tecnologia de Pasadena mostrou que uma solução contendo genes responsáveis pela produção de anticorpos contra o HIV impediu por completo, em animais, a contaminação pelo vírus. Em humanos, há uma experiência em curso há 11 anos. Em 2012, parte dos resultados foi publicada no renomado Science Translational of Medicine. Os genes associados à produção de anticorpos anti-HIV continuam funcionando. Não há sinal de reação imunológica. A doença, porém, não foi totalmente controlada.
Outra enfermidade na qual a terapia dos genes poderá salvar vidas é a diabetes. O tratamento objetiva regularizar a produção e aproveitamento da insulina, hormônio que permite a entrada, nas células, da glicose circulante no sangue. Na Faculdade de Medicina de Baylor (EUA), cientistas reverteram a doença em ratos: tanto a diabetes tipo 1, a forma hereditária, quanto a diabetes tipo 2, a adquirida. “Pelo menos em animais, pode-se dizer que é uma cura”, disse à ISTOÉ Lawrence Chan, líder do trabalho.
No Brasil, a Unicamp testará a terapia gênica como tratamento para pacientes com hemofilia B grave, uma doença genética que provoca graves hemorragias pela ausência de Fator IX, responsável pela coagulação do sangue. “Tivemos três pacientes que receberam esse tipo de tratamento e estão bem”, relata Margareth Ozelo, diretora da unidade de hemofilia do hemocentro da universidade. A estratégia é inserir genes vinculados à produção do fator IX.
Também há esperanças no tratamento do câncer. Uma delas reside no combate ao melanoma, a forma mais grave dos cânceres de pele. Cientistas da Universidade de San Diego dotaram o vírus da herpes com instruções genéticas que permitem ao organismo destruir as células tumorais e ter o sistema de defesa fortalecido. Dos 30 pacientes que receberam esse vírus modificado, 26% tiveram resposta positiva ou regressão da doença. Na China, há uma droga aprovada contra o carcinoma (outro tipo de câncer de pele). No Instituto de Ciências Biomédicas da USP, os cientistas estudam possíveis reparos no DNA que podem proteger contra a doença. Outra abordagem é fazer com que a célula doente fique mais sensível aos quimioterápicos.
No campo da cardiologia, as experiências são igualmente diversas. Aqui, as estratégias vão desde usar a terapia genética para combater o acúmulo de gordura nas artérias até o controle da pressão arterial. Na mais recente delas, pesquisadores da Escola de Medicina de Monte Sinai (EUA) testaram uma droga para tratar e prevenir a insuficiência cardíaca. A equipe descobriu que a proteína SUMO1 fica diminuída nesses pacientes. Eles injetaram, em animais, um gene capaz de regular a produção dessa substância. A função cardíaca melhorou significativamente. Também está em estudo uma vacina com genes capazes de levar o sistema imunológico a atacar as placas de gordura oxidadas nas artérias, problema que pode levar ao infarto. No Instituto do Coração, de São Paulo, o professor José Eduardo Krieger também estuda o potencial da terapia. “Em animais, tivemos resultados positivos com proteção cardíaca pós-infarto.”
Apesar do sucesso desses recursos, algumas ponderações são necessárias. Hoje, permanece a existência de limites técnicos para a produção em larga escala dos vírus modificados geneticamente, os tais veículos. Isso ainda encarece brutalmente o tratamento. Também ainda se buscam formas de assegurar que os genes inseridos funcionem adequadamente e não induzam à formação de problemas, como tumores. Porém, a contar pelos desafios já enfrentados pela terapia, é de esperar que os obstáculos fiquem cada vez mais para trás.
Fonte: Revista ISTOÉ