Criado em 1972 pelos cientistas americanos Theodore Friedmann e Richard Roblin, o conceito da terapia gênica consiste na troca de um gene "defeituoso" por outro normal. Para que isso seja possível, são retiradas amostras genéticas do paciente. Em seguida, o gene que carrega o DNA com defeito é isolado e se produz uma nova cópia dele sem o problema original. Esse novo gene, chamado de gene terapêutico, é, então, inserido em um vetor. Normalmente, o vetor escolhido é um vírus, organismo especializado em invadir células. Depois de injetado na célula, o novo DNA substitui o DNA defeituoso ao se integrar ao genoma celular e começa a dar ordens ao organismo. As células que receberam esse novo gene se multiplicam, perpetuando a novidade no organismo. Essa troca de DNA pode funcionar como um tratamento eficaz para doenças hereditárias — como no caso do britânico Rhys.
"É como se a fita do genoma fosse um zíper com um dente faltando. Uma maneira de corrigir o problema é colocar um durex no lugar do dente que está faltando. Assim, o zíper volta a fechar com mais facilidade, apesar de não escorregar de maneira perfeita. O mecanismo de correção é a terapia gênica. O durex em si é o gene alterado inserido na célula", explica Mayana Zatz, geneticista da Universidade de São Paulo (USP) e colunista do site de VEJA.Abril de 2002. A única esperança de Rhys Evans era um vírus. Portador da síndrome da imunodeficiência combinada grave (SCID, sigla em inglês), também conhecida como doença do menino bolha, o britânico, então com 18 meses, recebeu uma injeção na veia contendo um vírus que carregava um gene alterado em laboratório. Ao entrar na corrente sanguínea de Evans, o microorganismo ligou-se às células da medula óssea. Arremessado para dentro do núcleo, o novo gene começou, então, a mudar as ordens para que as células de defesa passassem a ser produzidas.
Atualmente, Rhys Evans ainda depende de remédios diários e de injeções semanais para se manter saudável. Mas a terapia gênica, uma novidade que parecia ficção científica na época, salvou a vida do garoto — pacientes com SCID costumam viver por apenas dois anos. Agora, dez anos depois do tratamento pioneiro, a Agência Europeia de Medicamentos (EMA, sigla em inglês) aprovou a primeira terapia gênica do continente, a primeira no mundo fora da China (onde o rigor com esse tipo de pesquisa ainda não é tão grande). O Glybera, nome da terapia, é destinado a pacientes vítimas de uma doença rara que provoca inflamações no pâncreas.
Tratamento pioneiro — Existem hoje mais de 50.000 pesquisas em terapia gênica elencadas pelo PubMed, principal banco de dados online de pesquisas de saúde. Ainda assim, apenas três tratamentos feitos com terapia gênica estão liberados para uso no planeta. Dois pela China e um pela União Europeia. Aprovado em julho deste ano pela EMA, o Glybera é um adenovírus que codifica a lipoproteína lipase para o tratamento de pacientes com deficiência na produção dessa enzima. Essa condição rara é caracterizada por crises de pancreatite severas ou múltiplas.
A doença é causada por uma mutação genética que impede a produção da enzima, necessária para a quebra de partículas de gordura no sangue, que se formam após as refeições. Sem essa enzima, a gordura pode se acumular tanto que a cor do sangue chega a ficar meio esbranquiçada. Pacientes com essa condição são muito mais suscetíveis a terem crises de inflamação no pâncreas. Atualmente, o único tratamento disponível é uma dieta extremamente baixa em gordura. No tratamento com o Glybera, são inseridas no organismo do paciente cópias corretas do gene responsável pela produção da lipoproteína lipase. De acordo com a EMA, um tratamento único, que consiste na injeção em diversos pontos dos músculos da perna, pode fazer com que haja uma produção — mesmo que parcial — das enzimas por diversos anos. O paciente não chega, no entanto, ao estado considerado normal de quebra de gorduras. Ele consegue produzir, no entanto, quantias suficientes da enzima para que possa viver com mais qualidade de vida.
Além do tratamento de doenças, a terapia gênica poderá aperfeiçoar o corpo humano. Especialistas do Centro Nacional de Pesquisa em Câncer (CNIO, na sigla em espanhol), na Espanha, mostraram que a longevidade de animais pode ser aumentada com terapia genética aplicada na fase adulta. Nos testes, os pesquisadores utilizaram camundongos adultos (um ano de idade) e idosos (dois anos de idade). Após receberam a terapia gênica, o primeiro grupo viveu, em média, por 24% mais tempo, enquanto os camundongos idosos tiveram um aumento de 13% na expectativa de vida. Além da longevidade, relatou o estudo, a saúde dos animais melhorou consideravelmente, retardando o surgimento de doenças relacionadas à idade, como osteoporose e resistência à insulina, e mantendo por mais tempo funções como a coordenação neuromuscular.
Outra pesquisa, desenvolvida na Universidade de Cornell, nos Estados Unidos, e testada em ratos, pode no futuro acabar com o vício em nicotina. O tratamento altera os genes do fígado do paciente, para que ele passe a produzir anticorpos que "atacam" a nicotina, impedindo que ela se ligue aos receptores de prazer do cérebro.
Doenças sem cura — Embora a terapia gênica seja um tratamento promissor para diversas doenças, principalmente as hereditárias e alguns tipos de câncer, a maior barreira é a utilização em larga escala. De acordo com a geneticista Mayana Zatz, a tecnologia não está apurada o suficiente para que se tenha controle absoluto sobre a inserção desse gene. A ciência não consegue ainda prever com certeza de que ele vai funcionar corretamente. Em caso de erros na substituição dos genes, ou mesmo quando um material não se integra no genoma, problemas sérios de saúde podem acontecer. Há riscos de desenvolvimento de tumores, por exemplo, ou de uma resposta imunológica muito forte, perigosa ao organismo. Por causa do pouco domínio da técnica, a terapia vem sendo testada comumente em doenças sem cura. E ainda enfrenta dificuldades para deixar os laboratórios. "Se alguém consegue conviver bem com determinada condição, por que arriscar com a terapia gênica?", diz Carlos Frederico Menck, especialista em genética e professor do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP.
Em alguns casos, os efeitos terapêuticos podem, ainda, ser inesperadamente transitórios, como no caso de uma pesquisa realizada pelo médico Renato Kalil, do Instituto de Cardiologia do Rio Grande do Sul, em 2009. O cardiologista conseguiu aumentar o número de vasos sanguíneos no coração de 13 pacientes. Mas, doze meses depois do procedimento, os pequenos vasos que haviam se formado desapareceram. "Os primeiros testes não tiveram sucesso, mas hoje temos melhores resultados para doenças como Parkinson e leucemia, por exemplo", diz Roberto Araújo, professor de pesquisa clínica do Instituto de Ciência, Tecnologia e Qualidade (ICTQ) e diretor de pesquisa clínica no RDO R&D.
Fonte: Revista Veja - http://veja.abril.com.br/noticia/saude/a-cura-pelos-genes