Você provavelmente já deve ter se deparado com o nome "fentanil" em alguma notícia recente. É que, nos EUA, esse medicamento —um opioide 100 vezes mais potente que a morfina— tem causado uma verdadeira crise de saúde pública, com mais de 600 mil mortes nas últimas duas décadas causadas pelo excesso de uso dele.
A crise é tão grave que pesquisadores, em artigo publicado no periódico The Lancet, estimam que, até 2029, EUA e Canadá podem ter até dois milhões de mortos por overdose em opioides.
Diante disso, médicos e cientistas tentaram desenvolver novas maneiras de frear o avanço desse tipo de dependência. Uma das alternativas é o desenvolvimento de vacinas específicas para reduzir o efeito dessas substâncias no corpo.
"Esse tipo de vacina tem um efeito protetivo", explica Rizzieri Gomes, médico cardiologista, focado na mudança do estilo de vida de seus pacientes, de Manaus, no Amazonas. "Ela não previne o abuso, o vício, mas reduz o efeito da substância no cérebro, o que vai diminuir o risco de overdose, de morte", afirma.
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Recentemente, pesquisadores da Universidade de Montana, nos EUA, anunciaram que pretendem iniciar já em 2024 os testes em humanos para uma vacina que protege usuários de heroína e fentanil. Os dados preliminares do estudo foram publicados no periódico NPJ Vaccines.
Desde 2022, uma outra vacina com a mesma finalidade também está sendo desenvolvida na Universidade de Houston. Os resultados iniciais também foram publicados, dessa vez no periódico Pharmaceutics.
Como essas vacinas funcionam?
Esse tipo de vacina tem como principal objetivo proteger a vida dos dependentes químicos, já que muitos acabam morrendo de overdose acidental pelo excesso de consumo de substâncias.
Basicamente, o que elas fazem é ensinar o sistema imunológico a criar anticorpos que reconhecem o tipo de molécula desses medicamentos. Assim, quando eles entrarem no corpo, esses anticorpos impedem que o opioide entre no cérebro e estimule a sensação de prazer.
A ideia de se usar vacinas para ajudar na contenção de danos para dependentes químicos não é nova: há estudos na Universidade de Yale, também nos EUA, de 2000 sobre uma vacina para a cocaína, por exemplo.
O próprio médico que hoje conduz os testes da vacina contra o fentanil na Universidade de Montana também já esteve à frente de outro estudo, em 2021, para viabilizar uma vacina contra a oxicodona —outro opioide que serviu como "porta de entrada" para a crise de opioides na América do Norte.
Por que o fentanil é tão perigoso?
O fentanil é medicamento da classe dos opioides e é uma alternativa importante para o controle e manejo de dores intensas em casos específicos, como câncer e cirurgias extensas, de acordo com Alvaro Pulchinelli, médico toxicologista do Fleury Medicina e Saúde.
O problema é que, nos EUA e no Canadá, o abuso de prescrições médicas recomendando o uso de opioides —incluindo a oxicodona, além do fentanil— aumentou vertiginosamente o número de dependentes químicos viciados nessas substâncias.
Considerado 100 vezes mais potente que a morfina, o fentanil é perigoso não apenas por ser altamente viciante como por causar risco à vida mesmo com doses consideradas baixas.
É um tipo de medicamento que causa uma depressão respiratória com pequenas doses", afirma Sérgio Rocha, psiquiatra especialista em dependência química e diretor da Clínica Revitalis, no Rio de Janeiro.
Ou seja, o risco de sofrer overdose utilizando o fentanil é alto, especialmente em quem luta contra o vício nessa substância.
"Houve um desvio de função desses medicamentos", lamenta Pulchinelli. E, uma vez que não tenham mais acesso a esses medicamentos, muitos passam a usar outras substâncias para suportar a abstinência, como a heroína —o que agrava mais uma vez toda a situação.
Felizmente, o uso de opioides no Brasil, por enquanto, ainda continua restrito aos casos específicos. "Por aqui, os médicos são muito mais parcimoniosos ao receitar opioides, o que torna esses medicamentos menos conhecidos do brasileiro", acredita Pulchinelli.
Essas vacinas podem ajudar de fato?
Sim, embora ainda sejam necessários mais estudos para entender melhor como elas funcionariam no corpo humano. Por enquanto, as vacinas foram testadas apenas em animais (como porcos e ratos).
"Pelos dados preliminares e estudos de segurança, pode, sim, ser um mecanismo sanitário de controle da expansão do consumo de fentanil, e ainda de evitar os efeitos devastadores do abuso da substância sobre a saúde do usuário, que corre risco real de morte", avalia Graciliano Ramos, professor de farmacologia da Universidade Estadual de Ciências da Saúde de Alagoas.
Por outro lado, há o receio de que o dependente apenas migre seu vício para outra substância, uma vez que não sinta mais prazer com o fentanil.
"O problema do dependente não é a substância, é o comportamento abusivo, a adicção", acredita Rocha. "Se ele não tratar isso, o risco de recair e seguir o uso de outras substâncias é grande, daí ver as vacinas com certa reserva para esses casos", explica.
Vale lembrar ainda que, como falamos no começo, a vacina tem um efeito protetivo, ou seja, visa conter os danos do abuso no uso do fentanil e reduzir o número de vítimas de overdose acidental causada pelo excesso de consumo.
"A prevenção continua sendo ainda a informação, especialmente entre os jovens, sobre os efeitos devastadores dessas substâncias na saúde humana, e reduzir o acesso às substâncias que causam dependência", acredita Rizzieri Gomes.
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