É comum, em todo o ciclo de trabalho do farmacêutico, ele ser cobrado pela qualidade de sua atuação. Isso faz parte de sua rotina e requer certo grau de controle emocional e técnico, porque envolve diretamente a segurança e a saúde da população. No entanto, há determinadas atividades do farmacêutico que realmente o deixam à beira de um ataque de nervos, como as inspeções realizadas pela Anvisa nas indústrias! Brincadeiras à parte, a questão é relativamente séria na medida em que envolve muita tensão nas relações entre os inspetores e os profissionais responsáveis por atendê-los!
Apenas para lembrar, os objetivos das inspeções da Anvisa nas indústrias farmacêuticas são a verificação do efetivo cumprimento dos requisitos preconizados pelas normas vigentes de Boas Práticas de Fabricação (BPF).
Geralmente, os setores envolvidos com o processo de fabricação dos medicamentos são inspecionados, como: garantia da qualidade (GQ), controle de qualidade (CQ), produção, almoxarifados, manutenção, utilidades e meio ambiente. Em especial, a GQ se destaca por desempenhar papel fundamental durante as inspeções, desde o recebimento dos inspetores, acompanhamento e condução durante todo o período da inspeção, até o gerenciamento das ações necessárias, caso sejam solicitadas exigências pelo órgão fiscalizador.
O farmacêutico Ismael Rosa trabalhou na indústria farmacêutica cuidando diretamente dos assuntos que envolvem as inspeções da Anvisa. Ele cita que, durante o período em que a Agência permanece na empresa, a rotina dos profissionais, no período de inspeção, inevitavelmente é alterada de maneira drástica: “É evidente essa mudança em todos os setores envolvidos, especialmente os que fazem parte diretamente da fabricação e do sistema de qualidade da empresa”.
Rosa diz que a tensão faz parte da rotina de inspeções sanitárias. O principal motivo para isso é a ânsia de conseguir atender a todas as solicitações exigidas pelos inspetores. “Este atendimento integral das normas que regem as BPF é um retrato da qualidade da empresa”, lembra ele. Em contrapartida, o não atendimento dessas normas poderá expor uma ineficiência do sistema de qualidade, que dependendo das não-conformidades encontradas durante a inspeção, implicará desde exigências simples, até multas e sanções legais, como o recolhimento de produtos e interdição da empresa.
É fato que há muita tensão no ar! O farmacêutico comenta que durante as inspeções, tanto os inspetores quanto os inspecionados estão com os nervos à flor da pele. “Isso faz com as reações de animosidade transcendam neste período, principalmente quando há conflitos e divergências de opiniões entre eles, ou evidências de que as normas de BPF estão sendo descumpridas”, lamenta o profissional.
A farmacêutica e consultora do mercado farmacêutico, Sara Prado, concorda. Ela diz que o conflito depende da maturidade e da solidez das Boas Práticas de Fabricação da indústria em questão. Porém, é normal que haja certa tensão, visto que as empresas são compostas por seres humanos, e onde há pessoas existe a possibilidade de erros e de desvios. “Do outro lado, ainda percebemos alguns inspetores que estão em processo de melhoria da sua forma de vislumbrar o papel da auditoria nas indústrias. Não há interesse, a meu ver, que nenhuma organização seja penalizada ou, em último caso, interditada, porém a responsabilidade desse servidor, enquanto auditor, é garantir a saúde dos usuários dos medicamentos”, diz a consultora.
Para ela, mesmo havendo certo clima de ansiedade, o processo de auditoria está mais evoluído no País. As empresas também estão muito mais preparadas que no passado e, como os requisitos regulatórios são extensos e complexos, para continuar tendo competitividade, a qualidade do produto passou a ser primordial. Sendo assim, fica mais fácil para todos, inclusive para um organismo regulador como a Anvisa, auditar essa empresa moderna, que precisa estar um passo a frente dos requisitos regulatórios. “No mercado altamente competitivo e regulado, como o farmacêutico, a qualidade do produto e dos seus processos pode vir a garantir a sobrevivência da empresa”, alerta Sara. Mas a consultora reconhece, no entanto, que a simples auditoria, mesmo quando é interna, gera estresse, pois a percepção do processo é que a equipe está sendo julgada e que os auditores estão em busca de não-conformidade.
A boa notícia é que esta contenda não ocorre todos os dias. A periodicidade média das inspeções é de um a dois anos. Todavia, a Anvisa poderá, a qualquer momento, realizar inspeção sanitária de rotina ou de investigação de denúncia ou possível irregularidade sobre qualquer produto, independentemente do processo de Certificação.
“As agendas de inspeções são realizadas por meio da análise das petições de Certificação, de acordo com o critério da ordem cronológica da data de protocolo”, explica Rosa. Por ocasião da inspeção em um determinado estabelecimento, todas as petições referentes àquele estabelecimento, de produtos de mesma categoria (medicamentos, produtos para saúde, cosméticos, perfumes, produtos de higiene pessoal, saneantes ou insumos farmacêuticos) daquele que originou a inspeção, devem ser analisadas e incluídas no escopo da inspeção inicialmente programada.
Documentação solicitada
Em se tratando de inspeção para fins de Certificação de Boas Práticas de Fabricação (CBPF) são solicitados os documentos associados à estrutura organizacional da empresa, conforme exigido nos requerimentos das BPF (RDC nº 17, de 16 de abril de 2010) e outras legislações, como: Organograma; Manual da Qualidade; documentos comprobatórios da regularidade da empresa (projeto arquitetônico, certificado de vistoria do corpo de bombeiros, licença de órgãos ambientais, autorização da Polícia Federal etc.); controle integrado de pragas e vetores; documentos dos sistemas de utilidades - HVAC (desenho, monitoramento, limpeza, manutenção e relatórios), ar-comprimido e sistema de purificação de água; procedimentos operacionais padrão (POP) e demais documentos relacionados às etapas produtivas (amostragem, armazenamento, produção, embalagem, controle de qualidade, garantia da qualidade); lista de lotes produzidos; ordens de produção (OP); ensaios analíticos; especificações de matérias-primas (MP), materiais de embalagem (ME) e produtos acabados (PA); validação de métodos analíticos; calibração e programa de monitoramento de equipamentos e instrumentos; Plano Mestre de Validação (PMV), validações de processo (VP), validações de limpeza (VL), validações dos sistemas computadorizados (VSC); qualificações de equipamentos; estudos de holding time (tempo de estocagem de produtos intermediários); reclamações, recolhimentos e devoluções de mercado; Revisão Periódica de Produtos (RPP); qualificação de fornecedores e fabricantes; estudos de estabilidade; programa ambiental da empresa - resíduos, efluentes e tratamento de resíduos; programa de treinamento e saúde dos colaboradores.
“Após a solicitação das documentações, de forma amostral ou baseada em prévia análise de riscos e histórico de inspeções anteriores, os inspetores analisam os documentos - em sua grande parte - na íntegra. São avaliados os registros e organização documental, conforme os preceitos regulatórios das BPF, e demais legislações”, menciona o farmacêutico.
Mas as inspeções não são apenas documentais, elas podem ocorrer in loco também, especialmente nas áreas de almoxarifados, amostragem, pesagem, produção, utilidades, referência/retenção futura de amostras, controles de qualidade (físico-químico e microbiológico), câmaras de estabilidade e meio ambiente (tratamento de efluentes e resíduos).
A inspeção in loco dentro da produção geralmente ocorre seguindo o fluxo de fabricação dos medicamentos. Ela se inicia na área de pesagem e recebimento das matérias-primas. Exemplo: para as linhas de produtos líquidos e semissólidos, o fluxo se dá pela manipulação, envase (embalagem primária) e embalagem secundária. Para as linhas de produtos sólidos ocorre na manipulação, compressão ou encapsulamento, revestimento/drageamento, embalagem primária e embalagem secundária.
“Gostaria de lembrar que a não obtenção do Certificado de Boas Práticas de Fabricação (ou tendo este prazo de validade expirado ou perdido) não impede que a empresa funcione. Contudo, a indústria não conseguirá realizar o registro ou a renovação do registro de produtos, e concorrer em certamos públicos, visto que este Certificado é um pré-requisito para isso”, ressalta Rosa.
Já Sara diz que talvez a grande dificuldade - seja ela interna (auto inspeção) ou de terceira parte (inspeções e auditorias da qualidade - aquela realizada por organismo regulatório ou certificador) - seja a nossa visão quanto ao processo. “Devemos parar para relembrar o conceito puro de auditoria, que vem do latim auditore, aquele que ouve, ouvinte. Já em inglês, to audit, nos leva a um conceito mais abrangente, já que significa ajustar, corrigir, certificar. Dessa forma, podemos pensar que em uma prática em que possa existir correção, deve existir erro”. Ela indaga: Como imaginar falhas sem apontar culpados? Parece uma tarefa impossível. Talvez por isso, há o grande desafio de desmistificar um instrumento tão útil de tomada de decisões e melhoria das Boas Práticas de Fabricação. “Então, penso que a maior dificuldade ainda é uma certa miopia das organizações quanto ao papel da auditoria da Anvisa para nosso Sistema de Garantia da Qualidade”, finaliza a consultora.