Um sistema de qualidade na indústria farmacêutica só pode ser considerado eficaz se ele funcionar de forma preventiva, ou seja, ele deve evitar que as falhas ocorram. A única forma de fazer isso é por meio do gerenciamento de riscos.
Segundo o farmacêutico, especialista em Vigilância Sanitária e Gerente Comercial do ICTQ, Ismael Rosa, para uma avaliação eficaz dos pontos centrais e limites dos processos de fabricação e pontos críticos de controle, o uso da análise de riscos como ferramenta de qualidade é indispensável. “Para a tomada de decisão e o tratamento do risco, bem como a escolha das ferramentas a serem adotadas, é preciso considerar algumas possibilidades: 1 - eliminar/extinguir, quando é implementada uma medida para a resolução do risco identificado; 2 - minimizar/mitigar, quando serão tomadas medidas para reduzir os impactos e as probabilidades de ocorrência de risco; 3 - transferir, momento em que se pode fazer contratos de terceirização; 4 - aceitar, quando se pode aceitar o risco residual de baixa probabilidade, baixo impacto e alta detectabilidade”.
Vale lembrar que sempre que os riscos residuais permanecem (não existe risco zero), é evidente que o gerenciamento de riscos para a qualidade em sistemas e processos existentes demandará tempo, confiança e comunicação. Antes de tudo é preciso ter a casa arrumada, com boa estrutura, pessoal, procedimentos, treinamentos, boa estratégia de implantação e, primordialmente, as Boas Práticas de Fabricação (BPF) devem estar em pleno funcionamento.
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Para a professora de BPF e Documentação Técnica do ICTQ, Rosangela L.Ducraux Prado, o maior desafio no gerenciamento de risco para qualidade na indústria farmacêutica é fazer com que os envolvidos, principalmente a liderança, entendam o real valor que uma boa análise de risco possui. Quando bem feita, realmente mapeando os processos, avaliando os riscos envolvidos em cada etapa - desde a compra das matérias-primas até a distribuição dos medicamentos - e definido seus efeitos e as ações de mitigação ou controle dos riscos, esta é a ferramenta mais poderosa que se pode ter para a gestão.
“O conhecimento dos riscos envolvidos no processo e ações eficazes para eliminá-los ou mitigá-los torna os processos mais robustos e mais econômicos, pois as ações são implementadas antes que desvios de qualidade, reprovação de produtos e recolhimentos do mercado sejam realizados”, fala Rosângela. Porém, ela acredita que a maioria das empresas, incluindo os grandes laboratórios multinacionais, ainda utiliza essa ferramenta para justificar ações que não foram devidamente implementadas a tempo (preventivamente) e como forma de definir a liberação de produtos envolvidos em desvios de qualidade para o mercado.
Qualidade em segundo plano?
De acordo com a doutora em Ciências, com foco em Produção e Controle Farmacêuticos e professora de Gerenciamento de Riscos do ICTQ, Daniela D'Almeida Peres, o principal desafio na implementação do gerenciamento de riscos nas indústrias farmacêuticas é cultural. “Devido ao atual momento da economia mundial, estamos inseridos em uma realidade voltada primordialmente para vendas e produtividade, em que a qualidade, por ser dificilmente quantificada por indicadores de desempenho, acaba ficando em segundo plano e, algumas vezes, é até vista como vilã”, lamenta ela.
Esse cenário leva as indústrias farmacêuticas a lidarem com falhas com uma abordagem corretiva, atuando apenas no momento em que os desvios ocorrem, postura contrária à preconizada pelo gerenciamento de riscos, que se baseia no estudo e prevenção dos riscos.
Para a implementação de um sistema de qualidade efetivo (que tem no gerenciamento de riscos um dos seus principais pilares) é preciso haver, primeiramente, uma mudança de cultura organizacional, em que os investimentos em qualidade sejam concretos. “O trabalho é árduo e o retorno não é imediato, no entanto, a médio e longo prazos, a implementação da chamada cultura da qualidade gera retornos efetivos e de alto impacto, como a redução de retrabalhos, a mitigação de falhas em processos e produtos, o aumento da produtividade e, principalmente, o aumento da credibilidade das empresas perante seus principais clientes: os pacientes”, ressalta Daniela.
Ismael Rosa lembra ainda os desafios da fase do planejamento. Ele defende que nessa fase encontram-se três pontos fundamentais: 1 - definir a ferramenta para análise e identificação dos riscos - considerando o vasto portfólio disponível para tal; 2 - pessoal qualificado, que conheça profundamente os riscos inerentes aos processos executados na empresa; 3 - equipe multiprofissional, cuja responsabilidade, organização e relação intra e inter setorial são cruciais em todas as etapas desse ciclo.
Para ele, a administração de risco na qualidade é essencial para o sistema da qualidade da indústria farmacêutica, pois, por meio das ferramentas de gerenciamento de risco são alcançados benefícios, como:
1 - A óbvia eliminação e/ou redução de erros, melhorando a eficiência da fabricação e gerando economia para a indústria;
2 - A qualidade do produto sustentada ou melhorada evitando em muitos casos até o recolhimento de produtos;
3 - As especificações baseadas em parâmetros que realmente impactam na qualidade do produto;
4 - O entendimento na comunicação e o vocabulário comum em relação à gestão de riscos;
5 - As indústrias e as autoridades competentes passam a focar em áreas de maior risco e entendem os riscos residuais;
6 - A criação de apoio para decisões embasadas em ciência fundamentada em risco;
7 - A promoção de abordagem multidisciplinar (trabalho em equipe) nos setores produtivos;
8 - O encorajamento de uma abordagem preventiva em todos os processos;
9 - A racionalização de aplicação dos recursos em itens que realmente agregam valor; e
10 - O impedimento da aplicação de requisitos restritivos e desnecessários.
Vale lembrar que, com a publicação do guia ICH Q9, o gerenciamento de risco na indústria farmacêutica tornou-se mais científico, sendo um componente importante na manutenção da qualidade ao longo do ciclo de vida dos produtos, permitindo a pesquisa, o conhecimento e a avaliação do risco em todas as etapas das atividades de fabricação.
Maior eficácia
De acordo com Daniela, a eficácia de um sistema de qualidade se sustenta sobre três pilares fundamentais: o Quality By Design (ou seja, o foco em qualidade desde o desenvolvimento dos produtos), as Boas Práticas de Fabricação e Controle, e o Gerenciamento de Riscos. A partir do momento em que o foco de todos os colaboradores de uma empresa é a detecção, classificação e prevenção dos riscos - desde o desenvolvimento do produto até a sua comercialização - conseguimos atingir o que se chama de Sistema de Qualidade Total, com redução de falhas e foco em prevenção, detectando riscos previamente ao seu acontecimento.
“A mudança deve ser cultural e começar a partir dos níveis hierárquicos mais altos. O foco deve ser a qualidade e, consequentemente, os investimentos e treinamentos necessários devem ser feitos para garantir esta mudança de paradigma”, destaca ela.
Daniela considera o foco em prevenção fundamental e acredita que as agências reguladoras, nacionais e internacionais, também estão passando a valorizar essa nova visão de qualidade. A publicação de guias especializados em gerenciamento de riscos, bem como o advento de ferramentas cada vez mais específicas para a sua implementação - como o FMEA (Análise de Modo e Efeito de Falha) e FTA (Análise da Árvore de Falhas) - permitem classificar quantitativamente os riscos, com foco em sua probabilidade de detecção, ocorrência e severidade.
Extrapolando essas ferramentas para o âmbito industrial, é possível avaliar todas as atividades de produção e controle de qualidade de modo crítico, estudando as possíveis falhas e tomando medidas preventivas previamente a sua ocorrência. Essa nova forma de trabalhar representa grandes vantagens em curto, médio e longo prazos, pois, ao reduzir falhas e retrabalhos, ocorre o aumento de produtividade e lucratividade.
Ferramentas e Métodos
A gestão do risco para a qualidade está aliada a ferramentas e métodos. Segundo Rosangela, a principal ferramenta, além do próprio gerenciamento de riscos em si, é um sistema de treinamento robusto, em que realmente todos os envolvidos em atividades relevantes à qualidade dos produtos são devidamente treinados, com base em documentos muito bem escritos, detalhados e já criados considerando o tratamento dos riscos. “Viver na era em que toda causa de desvio de qualidade é erro operacional é viver de forma superficial e reativa. A disseminação do conhecimento de forma correta é o grande segredo. Isso dá muito trabalho, mas é extremamente recompensador. Só um sistema de treinamento robusto tira uma empresa da era das cavernas e a traz para os dias de hoje, um mundo de sistemas da qualidade preventivos e de processos seguros e eficazes”, defende a especialista.
Para Rosa, as ferramentas e métodos de análise de risco são essenciais para uma avaliação dos pontos e parâmetros sujeitos a controle dos processos, desenvolvimento dos produtos, definição de especificações e atributos críticos da qualidade. Auxiliarão na segurança, na eficácia e na qualidade do produto.
“Não existe uma ferramenta para cada caso, ou mesmo um método que contemplará a análise, o controle e a revisão do risco reunidos suficientemente para abordar todo o gerenciamento. Riscos específicos nem sempre requerem a mesma ferramenta”, lembra ele.
As 9 principais ferramentas e métodos utilizados:
1- Métodos de facilitação básicos de gerenciamento de riscos (gráficos, folha de checagem, mapeamento do processo, diagramas de causa e efeito etc.);
2- Análise de Efeitos e Modo de Falha – Failure Mode Effects Analysis (FMEA);
3- Análise de Criticidade de Modo de Falhas e Efeitos – Failure Mode, Effects, and Critically Analysis (FMECA);
4- Árvore de Análise de Falha – Fault Tree Analysis (FTA);
5- Análise de Perigos e Pontos Críticos de Controle (APPCC) – Hazard Analysis and Critical Control Points (HACCP);
6- Análise de Operabilidade de Perigos – Hazard Operability Analysis (HAZOP);
7- Análise Preliminar de Perigos – Preliminary Hazard Analysis (PHA);
8- Categorização e Filtração do Perigo – Risk, Ranking & Filtering (RRF);
9- Ferramenta Estatística de Suporte.
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