Da farmácia comunitária à alta tecnologia, existem mais de 70 possibilidades de carreira que o farmacêutico pode seguir ao se formar. A seleção pode incluir as indústrias de medicamentos, de cosméticos e de alimentos; laboratórios de análises clínicas e toxicológicas; hospitais privados e públicos; clínicas de reprodução humana; banco de órgãos; vigilância sanitária; nutrição; os setores de biologia molecular e controle da qualidade e tratamento de água; até a radiofarmácia. Para atender tamanha abrangência, a formação do farmacêutico sofreu mudanças importantes nas últimas décadas, voltando-se para um perfil mais generalista e com foco menos tecnicista.
Em 2000, a Federação Farmacêutica Internacional (FIP) e a Organização Mundial da Saúde (OMS) apontavam uma nova direção para o papel do farmacêutico, centrando seu foco na atenção ao paciente e na valorização do ser humano. No Brasil, essa abordagem desembocou em novas Diretrizes Curriculares Nacionais do curso de graduação em Farmácia, editadas pelo Ministério da Educação, em 2002. Segundo o Conselho Federal de Farmácia (CFF), tais diretrizes alteraram significativamente o perfil do profissional a ser formado. Deixaram de existir as habilitações, e o âmbito de formação passou a abranger todas as áreas das ciências farmacêuticas. O caráter tecnicista deu lugar à formação de um profissional com conhecimentos técnico-científicos, permeados de atividades de caráter humanístico, com capacidade de criticar, refletir e ser um agente de mudanças, apto a tomar decisões em prol da resolução de um problema de saúde, tanto no âmbito do indivíduo quanto da coletividade.
“A formação desse novo farmacêutico deve ser pautada por princípios éticos e científicos, capacitando para o trabalho nos diferentes níveis de complexidade do sistema de saúde, por meio de ações de prevenção de doenças, de promoção, proteção e recuperação da saúde, bem como na pesquisa e no desenvolvimento de serviços e de produtos para a saúde”, afirma Walter da Silva Jorge João, presidente do CFF. “O perfil generalista tem por objetivo preparar o estudante para atuação profissional nos mais variados segmentos do mercado”, explica Wanda Pereira Almeida, coordenadora de Graduação da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Unicamp. “Do ponto de vista curricular, o estudante de Farmácia é preparado para o exercício da profissão por meio de um projeto que contempla uma formação básica associada ao desenvolvimento de conteúdos profissionalizantes que começam a se solidificar com a realização dos estágios curriculares profissionalizantes”, completa Wanda.
Nova realidade profissional
Com a implantação do currículo generalista, o profissional ganhou destaque nas equipes multiprofissionais de saúde, passando a exercer uma função fundamental na promoção da saúde do paciente. Um marco nessa direção se deu em 2005, quando foi aprovada a Lei n° 11.129 que instituiu a residência multiprofissional na área da saúde. A iniciativa se caracteriza como ensino de pós-graduação lato sensu voltada à educação em serviço, sendo desenvolvida sob supervisão docente-assistencial. É oferecida por instituições, como universidades, centros educacionais e hospitais, gerenciadas por políticas estabelecidas em conjunto pelos Ministérios da Educação e da Saúde, por meio da Comissão Nacional de Residência Multiprofissional em Saúde (CNRMS). Os programas de residência multiprofissional incluem as áreas de Biomedicina, Ciências Biológicas, Educação Física, Enfermagem, Farmácia, Fisioterapia, Fonoaudióloga, Medicina Veterinária, Nutrição, Odontologia, Psicologia, Serviço Social e Terapia Ocupacional.
Segundo o CFF, existem no Brasil 138 programas de residência multiprofissional em saúde, que oferecem cerca de 480 vagas para farmacêuticos. Os programas ofertados contemplam diversas áreas, como saúde da família, oncologia, urgência e emergência e saúde coletiva. Eles funcionam em sistema de dedicação exclusiva, com uma carga horária de 60 horas semanais e duração mínima de dois anos. Os residentes recebem uma bolsa no valor de R$ 3.330 do governo federal para o regime de 60 horas semanais. Os programas têm por objetivo a formação em serviço de profissionais para a sua inserção no mercado de trabalho, particularmente em áreas prioritárias do Sistema Único de Saúde (SUS). “Isso estabelece muito bem o perfil dos profissionais que se inscrevem nestes programas: farmacêuticos que buscam atuar em hospitais e em equipes multiprofissionais da saúde da rede pública. Alguns hospitais privados também ofertam programas de residência, entretanto, em cumprimento à regulamentação vigente e com as mesmas diretrizes”, salienta o professor Lincoln Marcelo Lourenço Cardoso, coordenador acadêmico do Programa de Residência Farmacêutica do ICTQ Pós-graduação.
Residência inovadora
Visando oferecer uma alternativa à proposta dos programas de residência estabelecidos pelos Ministérios da Educação e da Saúde, o ICTQ criou o Programa de Residência em Área Profissional da Saúde em Serviços Clínicos Farmacêuticos voltado exclusivamente para os que atuam ou que desejam atuar no varejo. “A proposta do ICTQ é completamente diferente dos programas existentes. Ela objetiva formar o farmacêutico em serviços clínicos realizados na farmácia comunitária privada, segmento que comporta o maior número de profissionais farmacêuticos no Brasil”, revela Cardoso. Segundo o professor, existem cerca de 87 mil farmácias e drogarias no País, incluindo as de manipulação. Com a tendência de ampliação da oferta de serviços farmacêuticos e considerando que a Lei nº 13.021/2014 determina que esses estabelecimentos sejam unidades prestadoras de serviço de assistência farmacêutica e à saúde, conclui-se que os profissionais que atuam nesses locais necessitem desenvolver competências, habilidades e experiências práticas para o atendimento clínico.
A proposta de residência do ICTQ segue os mesmos padrões acadêmicos e estruturais de uma residência multiprofissional, com bolsas financiadas pelo governo federal. No entanto, com uma diferença fundamental: a formação não será no meio público e também não será na área hospitalar. Ela acontecerá no âmbito privado, ofertará bolsa de estudo de R$ 3.500,00 aos candidatos selecionados e formará especialistas em serviços clínicos para o varejo farmacêutico. “É nesse ponto que o programa de residência do ICTQ se mostra inovador, uma vez que busca ofertar a formação prática aos farmacêuticos do varejo”, afirma o professor Cardoso. O profissional que participar do programa estará apto para construir consultórios farmacêuticos, desenvolver e executar a prestação de serviços clínicos e prescrever com total segurança em qualquer farmácia de rede ou independente, uma vez que se dedicará integralmente ao estudo prático e ainda será remunerado por isso. Mas o professor faz questão de esclarecer que o curso não exclui outras áreas. “Mesmo os profissionais que objetivam atuar em outros segmentos, como hospitais e ambulatórios, podem se inscrever, pois agregarão conhecimentos que também se aplicam nesses ambientes de trabalho, principalmente no que se refere à identificação e resolução de problemas relacionados à farmacoterapia”, diz Cardoso.
Entre os diferenciais do programa de residência farmacêutica do ICTQ, estão o cenário – a farmácia comunitária que reproduz ambiente e condições reais de atendimento farmacêutico para a prática de serviços clínicos – e a metodologia de ensino, desenvolvida para a contextualização da realidade de atendimento ofertado na rede privada de farmácias comunitárias brasileiras. É uma proposta totalmente inovadora, como lembra o professor Cardoso. “Países como EUA e Canadá contam com programas de residência farmacêutica, mas todos são realizados em hospital. Não há paralelos conhecidos à proposta do ICTQ, nem mesmo no exterior.”
Para Wanda Pereira Almeida, o cuidado com a saúde do indivíduo, seja em aspectos preventivos, curativos ou diagnósticos, deve ser mediado por equipes multiprofissionais. Nesse aspecto, a residência em saúde é um passo importante. Em relação a programas de residência clínica farmacêutica voltada para o varejo, a professora da Unicamp entende que deve ser exigido e comprovado o cumprimento de um número mínimo de horas, com atividades práticas, uma vez que no varejo o ambiente não é controlado e um profissional mal preparado pode ser um risco à saúde do indivíduo. Mas vê que a especialização teórica e prática traz vantagens. “A prática, especificamente, deve ser feita com atividades de vivência e não apenas laboratoriais ou em simulações”, defende. “Acreditamos que a expertise diferenciada do profissional que conclui um programa de residência é marcante para a sua colocação no mercado como profissional de referência”, acrescenta Lincoln Marcelo Lourenço Cardoso.
A visão do mercado sobre a Residência
No setor privado, a expectativa para a residência farmacêutica é positiva. Para Marcela Oliveira, coordenadora farmacêutica da Ultrafarma, a proposta de especialização teórica e prática coloca o farmacêutico em vantagem competitiva no mercado, além de melhorar a confiança do próprio profissional diante os desafios da profissão. “As empresas estão carentes desses profissionais, principalmente em se tratando da clínica farmacêutica. Na Ultrafarma iniciamos um projeto de atenção farmacêutica, no qual o atendimento é realizado por duas farmacêuticas formadas em farmácia clínica. Nesse projeto, atendemos pacientes que utilizam diariamente muitos medicamentos com prescrição médica e os orientamos de modo que consigamos assegurar que o tratamento prescrito por seu médico tenha a eficácia esperada”, afirma Oliveira. O mesmo acredita Maria Susana de Souza, vice-presidente de Recursos Humanos da Raia Drogasil. “A formação prática contribui para a boa execução das tarefas do farmacêutico no dia a dia. Acreditamos e também investimos nisso. A empresa possui um programa de formação continuada nos aspectos técnicos, comportamentais e de gestão.”
Mas não é apenas o varejo que se anima com a ideia da residência farmacêutica voltada ao mercado. Na visão da indústria de medicamentos, essa opção traz vantagens importantes. Adriana Luz, diretora de Desenvolvimento Humano e Organizacional da Eurofarma é uma iniciativa importante para toda a cadeia farmacêutica. “Sem dúvida, é uma ação muito positiva, pois coloca o farmacêutico diretamente em contato com um dos nossos principais clientes, o que colabora para uma visão melhor do negócio”. Flávia Pegorer, diretora de Qualidade da Novartis, acredita que o profissional ganha pontos com a residência e sugere a criação de um curso voltado à indústria. “Todo processo de especialização e capacitação traz vantagens para o profissional. Um programa de residência na indústria, bem estruturado, traria um complemento fundamental para o profissional farmacêutico e o ajudaria a abrir portas para o primeiro emprego.” O mesmo pensa Elaine Menezes, gerente de Informações Médicas da Pfizer. “A especialização teórica e prática faz toda a diferença para o farmacêutico na hora de competir no mercado de trabalho.” Nesse sentido, revela, um programa de residência farmacêutica no varejo pode oferecer mais ferramentas para que o profissional conheça esse segmento a fundo e esteja mais bem preparado para lidar com os desafios que ele apresenta. “As especializações teóricas e práticas vão ao encontro da capacitação e qualificação necessárias do profissional e seriam muito bem aceitas pelas indústrias farmacêuticas”, assinala Ana Silvia da Costa, diretora corporativa de Gestão do Capital Humano da EMS.