Alguém me ajude? Floratil ou Foradil?

O comerciante de Santo André (SP), João Lopes de Azevedo, é hipertenso. Ele foi ao médico e saiu do consultório com uma receita cujo conteúdo era indecifrável para ele...e para muitos...Comprou o medicamento e foi para a casa. Chegando lá, fez algo que poucas pessoas fazem...e que provavelmente pode ter salvo a sua vida...ele leu a bula! Ele havia comprado o medicamento Retemic (sintomas relacionados à micção) e o médico havia prescrito o Renitec (anti-hipertensivo). Os farmacêuticos entenderão muito bem a gravidade desta troca.

Esta confusão é rara? Infelizmente não! Este foi apenas um dos diversos exemplos de troca de medicamentos ocasionada pela falta de entendimento da letra do médico.

O mais grave é imaginar que esta corrente - que envolve o médico, o farmacêutico e, muitas vezes, o balconista - acaba penalizando o único elo que é absolutamente frágil e inocente: o usuário, que pode usar um medicamento no lugar do outro, e com isso irá sofrer sequelas graves ou até mesmo ir a óbito.

Vale lembrar que o medicamento é o principal agente que causa intoxicação em seres humanos no Brasil, ocupando o primeiro lugar nas estatísticas do Sinitox desde 1994. Já segundo dados do Ministério da Saúde (SINAN), em 2014 houve 39.352 casos de intoxicação por medicamentos no País.

É responsabilidade dos farmacêuticos tentar decifrar a receita. Se for necessário, eles devem pedir ajuda. E eles têm feito exatamente isso e usam as redes sociais como apoio. É muito comum encontrar farmacêuticos em grupos relacionados à categoria no Facebook postando imagens de receita e pedindo ajuda. A maioria das vezes há sucesso, mas quando isso não ocorre, é dever deste profissional acessar o médico ou, na impossibilidade de fazê-lo, a receita não deve ser dispensada. Mais uma vez é o paciente quem arca com o ônus dessa problemática, pois ficará sem o medicamento.

Mas, por que os médicos simplesmente não escrevem com letra legível? Isso é um mistério...até mesmo para eles! O médico diretor do departamento Jurídico do Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp), Marcos Boulos, admite que a letra do médico pode ser considerada um problema nesta situação. Ele não entende porque isso ocorre, mas atribui talvez à falta de tempo do médico, especialmente no serviço público. Ele mesmo já mudou sua prescrição para a letra de forma, com o objetivo de minimizar o risco ao paciente.

“Há um código de ética que exige do profissional a letra legível. E ele sofre sérias sanções por não respeitar essa exigência”, lembra o médico. O artigo 11 do capítulo III do Código veda ao médico receitar, atestar ou emitir laudos de forma secreta ou ilegível, sem a devida identificação de seu número de registro no Conselho Regional de Medicina da sua jurisdição, bem como assinar em branco folhas de receituários, atestados, laudos ou quaisquer outros documentos médicos (http://migre.me/rCBLk).

A farmacêutica Jordana Dutra de Mendonça trabalha em uma farmácia de manipulação em Farroupilha (RS). Ela conta que, recentemente, uma paciente do SUS tinha em mãos a receita de um composto a ser manipulado prescrito pelo ortopedista. Ela ficou em dúvida sobre um dos componentes e tentou contato com o posto de saúde (até porque supostamente o componente que ela imaginava precisava de receita controlada de duas vias, e estava em receita comum). “Para o meu azar, e da paciente, o médico havia deixado o plantão e só retornaria na semana seguinte. A atendente do posto também não conseguiu entender o que o médico havia escrito no prontuário. Na dúvida, não dispensei, e a paciente foi orientada a voltar ao posto”, lamenta. Ela pergunta: nesta situação, quem perde? Perde a paciente que ficará sem o medicamento por uma semana, perde o médico que poderia ter ajudado a sua paciente, perde a saúde pública que podia ser mais efetiva e resolutiva se algumas medidas simples fossem tomadas.

“É frequente precisarmos fazer o contato com os médicos e, muitas vezes, as secretárias ou auxiliares do posto de saúde é que tentam entender o que os médicos escreveram nos prontuários”, revela.

A farmacêutica conta ainda que há também um médico já conhecido na sua cidade por sua letra ilegível. Os pacientes vão de farmácia em farmácia até alguém (normalmente mais antigo no estabelecimento) entender o que está escrito e dispensar o medicamento. Ele já foi contatado várias vezes, e admite que já foi até processado pela sua letra, mas afirma que aquela é a sua letra e que ele não consegue mudar. “Novamente: quem perde com essa situação? Todos perdemos”, lamenta Jordana. Ela prega: na dúvida, não dispense!

Receita eletrônica - luz no fim do túnel

O Projeto de Lei 3344/12, de autoria do deputado Ademir Camilo, tem o objetivo de acabar com esse problema e, para isso, institui a receita eletrônica. A medida, segundo o autor, se justifica pela necessidade de sanar erros de interpretação nas receitas, em razão da caligrafia, bem como evitar fraudes em programas governamentais como, por exemplo, Aqui tem Farmácia Popular.

Ele destaca que, de forma acertada, alguns hospitais e centros de saúde de renome já adotaram o receituário eletrônico no Brasil. O Instituto Nacional do Câncer (INCA) desde 2008 implantou o referido formato de receitas sob os argumentos que tal instrumento evita duplicidade de receitas e facilita o acompanhamento do histórico de medicamentos prescritos a determinado paciente.

Há quem diga que tornar obrigatória a expedição eletrônica de prescrições médicas e odontológicas em cidades com mais de duzentos mil habitantes (em torno de 130 municípios, conforme apregoa o projeto de lei) parece inviável, em um primeiro momento. A área de saúde pública no Brasil é caótica. Não são raras as notícias de pessoas que morrem a espera de leitos, hospitais que não dispõem dos mínimos recursos para atender seus pacientes e denúncias de falta de médicos. Muitas vezes os postos de saúde e hospitais públicos não dispõem, sequer, de seringas e materiais básicos para realização de curativos...o que dirá de computadores para a emissão de receitas!

O médico do Cremesp concorda: “Esse projeto de lei seria muito adequado, desde que todos os serviços tivessem um computador na sala do médico. Onde isso é possível, a receita eletrônica é totalmente viável”, fala Boulos.

Segundo o deputado, as receitas eletrônicas são geradas por computadores com ou sem internet, softwares diversos de forma simples com inserção de código de barras específico, contendo um registro numérico do medicamento prescrito, fornecido ao paciente que o apresenta em farmácias e drogarias, onde é feita a leitura ágil e fácil do código de barras, eliminando, assim, qualquer possibilidade de erro no atendimento. O código de barras inserido nas receitas médicas facilitará ainda com a sua digitalização, em farmácias e drogarias, por meio de leitores óticos padrão, já utilizados para identificação de medicamentos.

Nos hospitais, os erros devidos à prescrição contribuem significativamente para o índice total de erros de medicação e têm elevado potencial para resultarem em consequências maléficas para o paciente. “Estima-se que, em cada dez pacientes admitidos no hospital, um esteja em risco potencial ou efetivo, de erro na medicação. Esse risco aumenta na medida em que os profissionais não conseguem ler corretamente devido à letra ilegível ou à falta de informações necessárias para a correta administração”, acredita o deputado Ademir Camilo.

Há que se ressaltar, ainda, que a economia de tempo do médico ao dispor de um instrumento de rápida confecção do receituário lhe permitirá dedicar maior atenção ao exame do paciente, que merece ter um atendimento mais humanizado.

Vale citar um número assustador, conseguido por uma equação rápida pelo deputado. Ele diz que as farmácias costumam atender, em média, às receitas de oito pacientes por dia. Assim, fazendo uma conta por cima, com base na prática médica do País, em que temos aproximadamente 360 mil médicos ativos e mais 22 mil médicos residentes, cada um deles gerando oito receitas, teremos um total de 3.056.000 receitas por dia, sejam impressas ou mesmo manuscritas. Multiplicando-se este número por 22 dias de trabalho, temos 67.232.000 de receitas todos os meses! Imagine se apenas 1% das receitas forem dispensadas de maneira incorreta pela falta de entendimento do seu conteúdo? Teremos mais de 672 mil usuários utilizando medicamentos incorretos!

Preste atenção a alguns exemplos de possível confusão no balcão:

Retemic X Renitec
Tegretol X Tylenol
Mucofan X Buscopan
Clorpromazina X Clorpropamida
Losec X Lasix
Floratil X Foradil
Metformina X Methergin
Clorpropamida X Cloranfenicoladil

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